A terceira reportagem da série Jogadores Brasileiros no Caribe chega ao Haiti para falar do Real Hope FA, um clube com estreitas relações com o Brasil. Nada menos que cinco atletas do elenco para a temporada 2020 já jogaram pelo Pérolas Negras, clube do Rio de Janeiro que foi criado por meio da ONG Viva Rio que desde 2004 desenvolve uma missão de paz no Haiti.
Além disso, dois membros da comissão técnica possuem experiência no futebol brasileiro, e ao menos dois jogadores são nascidos por aqui: o meia Douglas Risi, de 23 anos, e o experiente atacante Rafael Paty, de 39 anos. Ambos desembarcaram no dia 3 de março em Porto Príncipe, capital do Haiti, para disputarem o Campeonato Profissional Haitiano pelo clube.
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Rafael Sobreira da Costa (ou Rafael Paty) nasceu em Paty do Alferes (RJ). Jogou em diversos clubes brasileiros, dentre eles Olaria, América-RJ, Remo, Tupi, Caxias, Noroeste, Ituano, Gama e Portuguesa-RJ, e também no sul-coreano Jeju United, em 2008. Após 12 anos, volta a atuar no exterior, mais uma vez com um destino inusitado.
Paty disse que sempre teve curiosidade em conhecer a fundo o futebol e o povo do país de muitos de seus companheiros do Pérolas Negras. “Fiquei muito feliz com o convite. Estou feliz por estar no Haiti vivendo essa experiência”, comenta.
O brasileiro lamenta o fato de ainda não ter tido a oportunidade de trabalhar coletivamente no Haiti devido ao fato de o torneio ter sido interrompido por conta da covid-19. “Estou confiante que tudo isso passará logo e que poderei voltar a fazer o que mais amo que é jogar futebol”, vislumbra.
Risi é natural do Rio de Janeiro. Já passou pelas categorias de base dos gigantes Flamengo e Fluminense e também pelo São Cristóvão. Como profissional, jogou pelo América de Teófilo Otoni-MG e pelo Pérolas Negras.
Mas o carioca não teve nem tempo de estrear pelo Real Hope. Uma lesão no tornozelo o deixou parado por duas semanas. E quando se recuperou, a covid-19 parou o mundo. Risi diz que o convite para jogar no país caribenho veio de Paty e de dirigentes do clube e logo de cara aceitou o desafio como uma oportunidade de evoluir como pessoa e jogador profissional.
Não é a primeira vez que brasileiros atuam no futebol haitiano. Lá na temporada 2011/2012, três brasileiro (Guilherme, William e Itor Lua), jogaram a Copa dos Campeões da Concacaf com o Tempête FC, da cidade de Saint-Marc.
Adaptação
Logo na chegada, Risi percebeu a desigualdade social no Haiti ainda mais agravada com o terremoto de 2010, que vitimou mais de 100 mil pessoas. E observou também o respeito e o carinho com que foi recebido por todos.
“Tive uma ótima impressão do clube que, apesar de novo, é bem organizado. Os dirigentes são muito atenciosos e o presidente [Odlin Vertieu] está o tempo todo preocupado com os jogadores e todos do clube. Um pessoa de índole a se respeitar”, comenta.
Paty e Risi vivem na residência de Vertieu. O volante destaca que estão sendo muito bem tratados e cuidados. Com a pandemia, não foi possível o retorno para casa, mas os dois explicam que estão se prevenindo e mantendo uma rotina de treinamentos diários para cuidar da forma física.
O idioma
Apesar de não ser fluente em crioulo haitiano, idioma mais falado no país, Risi aprendeu algumas palavras com a convivência com haitianos durante suas duas temporadas no Pérolas Negras.
A comunicação com a comissão técnica, segundo o jogador, é tranquila – o treinador Kowsky Sainvil fala português, já que jogou no Brasil por um tempo. Além disso, os jogadores Valdo Etienne, Waby Exilus, Corlens Etienne, Serge Anthony Lucien e Edmondo Dorvilus já jogaram pelo Pérolas Negras, o que facilita a comunicação com os companheiros, assim como o preparador de goleiros James Forestal, que também já trabalhou por aqui. Mas ele diz que tem estudado para aprender o idioma e melhorar a comunicação.
Culinária
A culinária haitiana não é tão desconhecida para Risi, já que pôde experimentar pratos típicos algumas vezes quando esteve no Pérolas Negras. Apesar de não saber o nome exato, disse que seu prato preferido é parecido com uma sopa. A única ressalva do jogador é em relação à pimenta “mega forte”, nas palavras dele.
Real Hope Football Academy
Risi é só elogios para o conjunto haitiano. Comenta que, apesar ser um time novo, fundado em 15 de março de 2014, o Real Hope Football Academy – ou apenas Real Hope FA – possui boa estrutura de treinamentos, material esportivo, academia, bons jogadores, boa acomodação e hospedagem. Explica que os dirigentes e integrantes querem melhorar o departamento médico, único setor ainda em falta.
“Alguns clubes brasileiros poderiam tirar referências desses times de fora do país que tem pouca estrutura, mas conseguem fazer um projeto para render bons frutos tanto para o clube quando para o atleta.”
O núcleo do clube fica em Cabo Haitiano, comuna do Haiti, que conta com cerca de 274 mil habitantes, de acordo com o censo de 2015, o mais recente que encontramos. São apelidados de “Rhinocéros”, ou Rinocerontes, em português. A casa da equipe é o estádio Parc St. Victor, com capacidade para 11. 500 espectadores. O início foi na terceira divisão (D3) e rapidamente foram promovidos à segunda (D2), em 2015. Com o título da D2, em apenas dois anos de existência, chegaram à Primeira Divisão (D1).
O momento mais marcante da história dos Rinocerontes foi o título de campeão haitiano do torneio de Abertura da temporada 2017. A conquista deu a oportunidade de participarem da Flow Caribbean Club Championship de 2018, em Trinidad & Tobago. No ano seguinte retornaram a competição, desta vez na Jamaica.
No dia 8 de março, em celebração ao dia mundial da mulher, o clube anunciou que também contará com uma equipe feminina, chamada Real Hope Jungless.
Elenco
O elenco é composto basicamente por jovens jogadores haitianos. O zagueiro Corlens Etienne, de 18 anos, esteve no Brasil no ano passado com a seleção haitiana sub-17 para a disputa do Mundial da categoria. O volante Bicou Bissainte, 21, e o lateral esquerdo Wendy St. Felix, de 22 anos, fazem parte da seleção sub-23 Haitiana que luta por uma vaga na Olimpíada de Tóquio. Outros jogadores com passagens pela seleção principal e pelas categorias de base são o goleiro Luis Valendi Odelus, de 25 anos, o meia atacante Johnson Jeudy, 21, o “winger” Valdo Etienne, 20, e o lateral Francy Pierre, de 22 anos.
Formação de jogadores
O Real Hope FA também desponta como o time que mais exporta jogadores para fora do país. Um deles é o centroavante Ronaldo Damus, que assinou com o norte-americano Dallas FC na temporada passada, mas foi repassado ao North Texas SC, time B da franquia. Damus foi o artilheiro da USL League One, terceira divisão norte-americana, com 16 gols, e também foi selecionado entre os melhores do torneio. Quem também esteve no elenco na temporada passada foi Bicou Bissainthe, outro atleta formado pelos Rinocerontes.
Outro ex-jogador que está seguindo carreira nos Estados Unidos é o lateral Denso Ulysse, do Inter Miami CF, clube de David Beckham na MLS. Ele se transferiu para o Seattle Sounders FC II na temporada 2016/2017 e suas atuações na USL (segunda divisão dos EUA) chamaram a atenção da nova franquia que o anunciou como reforço para a temporada de estreia principal liga de futebol dos EUA.
Valdo Etienne também passou pelo Dallas, mas na categoria sub-19. Retornou esta temporada ao time. O meia já defendeu as cores do Pérolas Negras no Brasil.
No dia 22 de fevereiro, Johnson Jeudy viajou aos EUA para fazer testes com o Dallas FC. O jogador ainda não assinou mas o Real Hope FA informou que ele deve retornar para mais testes após a pandemia.
Além desse, os ex-jogadores Chedlin Francoeur, Jean Jackinto e Nerlin St. Vil seguem carreira profissional no país vizinho, a República Dominicana.
Campeonato Haitiano
O Campeonato Haitiano é profissional e abrange 18 equipes para temporada 2020, duas a mais em relação à edição passada. O torneio é dividido em “Abertura” e “Fechamento”, os seis melhores classificam-se para os play-offs; os dois primeiros aguardam na semifinal os vencedores dos confrontos nas quartas entre o 3° x 6° e o 4° x 5° colocados na etapa de pontos corridos. Os vencedores de cada fase disputam a finalíssima para decidir quem será o grande campeão do país.
Antes de ser interrompido, o Campeonato Haitiano tinha o Baltimore SC na liderança com um gol de vantagem no saldo para o Cavaly AS, ambos com 10 pontos. O tradicional Don Bosco, em terceiro com 7 pontos e AS Capoise, Real Hope FA e Triomphe AC com 6 pontos cada completam o Top 6. O futuro da competição ainda é incerto pois o país continua em lockdown.
O campeão e vice do Campeonato Haitiano, ou seja, os campeão de cada um dos dois torneios, classificam-se para a disputa do Flow Caribbean Club Championship, que é a competição pré-classificatória para a Liga dos Campeões da Concacaf.
Para o Douglas Risi, o nível do campeonato haitiano é bem alto e conta com jogadores de técnica refinada. Explica que estilo de jogo do país é de defender bastante o que justifica o fato das partidas terem poucos gols e são raríssimas as goleadas. “Também estou melhorando minha qualidade de marcação. Aprendo muito com eles e passo um pouco da minha experiência resultando em uma troca muito boa.”, adiciona.
Em números, dos 36 jogos disputados na temporada atual, 17 delas tiveram resultado de 1 a 0; e apenas duas goleadas: uma por 4 a 0 e outra por 3 a 0.
Já Paty destaca que o futebol haitiano é aguerrido, rápido e com muita força, o que para o experiente atleta lembra o estilo de jogo brasileiro.
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