Noite, 17 de novembro. O juiz encerra o jogo e uma comemoração generalizada começa. Dos 11 homens em campo, cinco erguem os braços ao céu, dois estão de joelhos, outros dois se abraçam, além de mais um pular de alegria. O goleiro, a imagem não mostra. Mas capta o momento que um integrante da comissão técnica saiu correndo em sua direção para celebrar. Era festa. Era título. Não havia troféu para levantar, mas a história estava sendo escrita: Gibraltar, outrora a “pior seleção do mundo”, subiu de divisão na Nations League ao empatar com Liechtenstein.
Gibraltar, “dividida” entre dois países
Para quem não sabe, Gibraltar é um território da Grã-Bretanha de 33 mil habitantes, mas está localizado no sul da Espanha. Sim, isso mesmo: Gibraltar fica, praticamente, na ponta da Europa, onde é possível ver o Marrocos apenas a 14 km de distância. Esta região, que divide a Europa e África, é chamada de Estreito de Gibraltar (separa o Atlântico do Mar Mediterrâneo), uma importante rota de comércio marítima.
Porém, quando falamos sobre o país Gibraltar, a polêmica da divisão está entre ingleses e espanhóis. O motivo? O território era espanhol e foi cedido à Grã-Bretanha em 1713 como parte do pagamento pela Guerra de Sucessão Espanhola. Desde então, há faíscas entre os dois países quanto a soberania de Gibraltar – sobretudo do lado espanhol, que reivindica a posse do país.
Embora haja uma forte influência espanhola entre os habitantes e trabalhadores locais, ser parte do território do Reino Unido é amplamente aceito pela população gibraltina.
O que isso impacta no futebol?
A Espanha se opôs fortemente a inclusão de Gibraltar à UEFA. Chegou a liderar um movimento para barrar a entrada, fez reuniões com o então presidente Michel Platini sobre o tema, mas, desde 2013, Gibraltar se tornou membro definitivo da entidade. Isso ajudou o país a entrar na FIFA em 2016 depois de quase 20 anos de espera. Hoje, segundo o regulamento da FIFA, Espanha e Gibraltar estão proibidas de se enfrentar.
Seleção: começo alternativo na Island Games e FIFI
Com uma população bem pequena, o desafio se torna ainda maior angariar novos jogadores e formar uma seleção competitiva. Para dificultar um pouco mais, o conflito geopolítico com a Espanha impôs uma demora na aprovação da FIFA/UEFA para Gibraltar disputar eliminatórias e amistosos oficiais. Resultado: sobrou a opção de jogar em competições alternativas.
A estreia da seleção de Gibraltar aconteceu somente em 1993 no Island Games. Esta competição é uma espécie de miniolimpíada para ilhas europeias e outros pequenos territórios. Ali, Gibraltar perdeu os três jogos, entre eles uma derrota de 5×0 para a Groenlândia.
Em 1995, Gibraltar foi sede dos jogos e vice-campeão no futebol perdendo a final para a ilha de Wight, localizada na Inglaterra. A primeira vitória internacional da seleção se deu contra a ilha de Man por 2×1 na fase de grupos. Man é outro território britânico, embora situado no Mar da Irlanda.
A cada dois anos, Gibraltar bate ponto na Island Games, onde chegou a ser ouro em 2007. Inclusive, a competição existe até os dias atuais, o país participa em diversas modalidades, mas, desde a entrada à FIFA, só a seleção feminina continua no futebol.
Cadê a FIFI? Sim, o corretor não errou a sigla. FIFI vem de Federação Internacional de Futebol Independente. Foi uma micro Copa do Mundo de nações não representadas pela FIFA, com edição única em 2006. A curiosidade é que, embora houve apenas seis seleções, ela aconteceu em Hamburgo, uma semana antes da abertura da Copa de 2006.
O local se explica por um dos organizadores ser o clube alemão St. Pauli. No fim, Gibraltar caiu nas semis para o Chipre do Norte, que acabou campeão.
Início na UEFA e chegada do técnico uruguaio Julio Ribas
O começo de Gibraltar nas competições da UEFA não foram nada animadores, como era o esperado. Nas eliminatórias da Euro 2016, 10 jogos, 10 derrotas, goleadas acachapantes e apenas dois gols feitos, contra a Escócia (perdeu de 6×1) e Polônia (derrota de 8×1).
Mas nem tudo era sinônimo de lamentação.
Em 2013, primeiro ano como filiada, empatou sem gols com a Eslováquia, que tinha ido a Copa da África três anos antes. A primeira vitória oficial veio um ano depois contra Malta por 1×0. Ambas as partidas foram amistosos, mas válidas como data FIFA.
A história da seleção começa a mudar quando é contratado o técnico uruguaio Julio Ribas, em 2018.
Ribas não é um figurão qualquer. Longe disso. Tem no currículo um título uruguaio pelo Peñarol em 1999. Ficou famoso por se envolver numa briga campal ao comandar o Peñarol no clássico contra o Nacional, em 2000. Esta história ganhou outra dimensão: nove jogadores foram presos (seis do Peñarol) junto do técnico Ribas. Ficaram oito dias na prisão, mas não houve tempo de descanso: Ribas os colocou para treinar subindo e descendo escadas da prisão e jogando futebol no pátio aos intervalos de banho de sol.
O treinamento era pensando nas finalíssimas, haveria mais dois repetecos entre Peñarol e Nacional. Pena para Ribas, que não pode comandar o time e viu o rival ser campeão.
A história de Ribas teve idas e vindas em times do Uruguai, passagem na seleção do Omã e quando trabalhava num complexo esportivo na Espanha, local onde times iam treinar, o convidaram para assumir o principal clube de Gibraltar, o Lincoln Reds Imps. Sucesso imediato: fez a trinca, ao ganhar campeonato, copa e supercopa gibraltina. Não demorou para chegar a proposta de assumir a seleção nacional.
Falamos com Robin Sheppard-Capurro, repórter da GBC Sports, emissora de televisão e rádio de Gibraltar para entender a importância de Ribas na melhora da seleção.
“O treinador da seleção, Julio Ribas, tem sido excelente para Gibraltar! Um uruguaio fez com que nos sentíssemos mais gibraltinos do que nunca! As suas táticas e nível de disciplina são de classe mundial. É um privilégio tê-lo aqui. Claro, são os jogadores que ganham a partida, mas é o Julio que faz com que cada jogador acredite que é possível”, afirma.
Foi com Ribas, por exemplo, que se criou um ritual pré-jogo entre jogadores e comissão técnica na hora do hino nacional: todos se viram em direção ao Rock, rochedo de Gibraltar que serve como referência e símbolo nacional. Uma forma de demonstrar respeito ao país.
O ano de 2018 também marcou a estreia do estádio de Gibraltar em jogos oficiais, o Victoria Stadium, antes o time mandava as partidas em Portugal. O inusitado do campo gibraltino é ser ao lado da avenida que serve como pista do aeroporto. Sim, a avenida é fechada para os carros enquanto o avião pousa ou decola. Não é raro ver imagens do jogo rolando e um avião passar ao lado suspirando em direção aos céus.
Dentro de campo, avanços
A subida à Liga C na Nations League é, sem dúvida, o ápice da curta história da seleção. Porém, já existiam sinais com Ribas que, aos poucos, progressos aconteciam.
Ainda no Lincoln, Ribas conseguiu um resultado marcante na fase preliminar da Champions League contra o Celtic de Brendan Rodgers. A vitória de 1×0 na ida não foi suficiente, já que o clube escocês fez 3×0 na volta. Não parou por aí.
Com a seleção de Gibraltar, em 2018, o uruguaio conseguiu mais uma façanha: venceu a Armênia fora de casa, novamente com o placar mínimo. Pensou que era a Armênia B? Nada disso: tinha Mkhitaryan como 10 e capitão.
A seleção consegue, dentro de suas limitações, ser organizada e taticamente não deixa a desejar, mesmo com uma renovação lenta. Desde 2013, são seis vitórias oficiais, entre elas contra San Marino e Liechtenstein, outros participantes da Liga D, que rendeu o acesso inédito na Nations League.
Vale lembrar que, em tese, Liechtenstein seria a favorita do grupo, além de San Marino ter mais experiência em competições internacionais do que Gibraltar. Duas vitórias e outros dois empates foram suficientes para a seleção gibraltina chegar ao seu maior feito até então.
Influência de estrangeiros na liga de Gibraltar
A grande maioria dos jogadores da seleção de Gibraltar atua no próprio país. A liga nacional, composta por 12 times na primeira divisão, conta com a participação de muitos estrangeiros, sobretudo espanhóis – dada a facilidade no acesso pela fronteira. Isso vem ajudando na profissionalização do campeonato, uma vez que o trânsito de jogadores gibraltinos em outras ligas é pequeno e alguns atletas têm outras profissões paralelas.
Como exemplos, o goleiro titular da seleção, Dayle Coleing, joga pelo Glentoran na Irlanda do Norte. O zagueiro Scott Wiseman esteve em Salford City, da quarta divisão inglesa. Além dos atacantes Reece Styche e Adam Priestley, que jogam na sétima e nona divisão inglesa respectivamente. No geral, a seleção tem como base três equipes locais, o Lincoln, Europa e St. Joseph’s, o que contribui para um maior entrosamento entre os atletas.
“O fluxo de jogadores estrangeiros tem sido bom e ruim para o futebol nacional. Definitivamente, elevou o padrão geral da liga, com jogadores vindos de todo o mundo (incluindo o Brasil) e dando um exemplo do que significa ser um jogador de futebol profissional. Mas tantos jogadores estrangeiros (que são pagos) significaram menos oportunidades para os jovens jogadores locais, o que a longo prazo prejudica o progresso da nossa seleção nacional”, avalia Sheppard-Capurro.
Segundo Robin, o problema é semelhante a chegada de treinadores estrangeiros. Ainda que alguns tiveram um impacto positivo no país, como no caso de Ribas, muitos não tiveram êxito, mesmo com boa reputação. Isto é, influencia no espaço e desenvolvimento de treinadores gibraltinos.
Outra questão bastante discutida em Gibraltar é sobre o Brexit. Como o território pertence ao Reino Unido, pode sofrer consequências com a saída dos países britânicos da União Europeia em 2021. O futebol não está imune a isso, como indica Sheppard-Capurro.
“O Brexit pode ter um efeito na liga nacional de Gibraltar. Os jogadores espanhóis que vivem do outro lado da fronteira na Espanha podem não conseguir entrar para Gibraltar tão facilmente. Ainda não sabemos”.
Na realidade, o que sabemos é que, embora haja um longo percurso, a seleção de Gibraltar está apenas no começo e já faz história.
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