O futebol ainda vivia uma outra era em 16 de julho de 1950. Naquela data, o Maracanã silenciou ao ver o Uruguai vencer o Brasil por 2 a 1, no jogo que decidiu a Copa do Mundo a favor dos uruguaios. A seleção brasileira poderia até empatar a partida para se sagrar campeã, e ainda fez 1 a 0 com Friaça; no entanto, os celestes viraram com gols de Juan Alberto Schiaffino e Alcides Ghiggia e foram bicampeões.
A euforia prévia brasileira deu lugar ao silêncio com ares de tragédia. No livro Futebol ao Sol e à Sombra, o escritor Eduardo Galeano diz que o capitão uruguaio, Obdulio Varela, “passou aquela noite bebendo cerveja, de bar em bar, abraçado aos vencidos, nos balcões do Rio de Janeiro”.
“Os brasileiros choravam. Ninguém o reconheceu.”
A obra de Galeano descreve de forma bastante romântica a relação entre público e futebol naqueles tempos. Em 1950, os torcedores estavam bem distantes do vínculo entre fãs e ídolos que se veria nos anos seguintes. Via de regra, os jogadores profissionais ainda não ganhavam fortunas e poderiam passar como anônimos. Uma camisa oficial que custa algumas centenas de reais em 2022 (e que pode pode valer milhões em um leilão) ainda era apenas uma peça de roupa, um uniforme de trabalho de um atleta.
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A camisa que Ghiggia usou naquele jogo, por exemplo, poderia valer uma fortuna em alguma casa de leilões da Europa. Mas é possível que, antes mesmo da Copa do Mundo seguinte, ela estivesse bem longe do Uruguai e já tivesse sido dada a um humorista.
Vale destacar que o possível agraciado não era qualquer humorista. Antes de contarmos essa história, talvez seja preciso apresentar quem foi homenageado – um tal de Cantinflas.
O encontro misterioso
Nome artístico de Mario Fortino Alfonso Moreno Reyes, o mexicano Cantinflas foi ator, cineasta e comediante. Com diversos trabalhos entre as décadas de 1930 e 1980, tornou-se conhecido em todo o mundo, graças em especial a suas interpretações de tipos humildes.
Cantinflas viveu seu auge entre as décadas de 1940 e 1950, inclusive conquistando o Globo de Ouro pela atuação em A Volta ao Mundo em 80 Dias (1956), obra que ainda venceu cinco categorias do Oscar. Nos EUA, foi homenageado com uma estrela na Calçada da Fama, na Hollywood Boulevard, e deixando as marcas das mãos e dos pés no Teatro Chinês – dois dos mais emblemáticos tributos do cinema norte-americano. Morreu em 1993, aos 81 anos.
Apaixonado por esportes, em especial o futebol e o boxe, Cantinflas foi nomeado presidente honorário do América na década de 1940. O clube da Cidade do México passava por um mau momento, e a decisão foi uma tentativa da diretoria de ares mais leves ao que se passava por ali.

Foi nesta condição que Cantinflas visitou o América em 12 de junho de 1953, em agenda eternizada pela Fototeca Milenio, agência fotográfica do jornal de mesmo nome. No evento, prontificou-se a incentivar os jogadores, e deu de presente à diretoria a camisa da seleção do Uruguai que teria pertencido a Ghiggia, com quem se encontrara anos antes.
E é aí que começa a encrenca.
O filho de Ghiggia, Arcadio, afirma que o pai se encontrou de fato com Cantinflas durante um festival de cinema em Punta del Este em 1951. Mas duvida que, embora fosse fã do mexicano, tenha oferecido a camisa.
“O que sei é, das palavras de meu pai, que uma vez o levaram a Punta del Este, a um festival de cinema, porque viria Cantinflas. Levaram para apresentar os campeões de 1950. Mas nunca me disse ter dado uma camiseta a Cantinflas”, disse Arcadio ao site mexicano Mediotempo.
Apesar da foto de Cantinflas entregando a camisa do Uruguai ao América, não há como assegurar que a peça realmente tenha pertencido ao Ghiggia. Também segundo o Mediotiempo, o jornalista uruguaio Eduardo Rivas alegou que “nem o filho de Ghiggia sabe o paradeiro da camisa”.
Arcadio tem uma teoria para o destino da camisa 7 de 1950. Para ele, a peça foi inicialmente levada com outros objetos à capela de Santo Como, na cidade uruguaia de Florida, como agradecimento pela conquista do Mundial no Brasil; no entanto, segundo ele, o local foi alvo de um roubo posterior.
Outra possibilidade
Descobrir detalhes do encontro de Ghiggia com Cantinflas é tarefa das mais complicadas. Sendo de fato a camisa que Ghiggia vestiu naquele Brasil 1 x 2 Uruguai, a peça passou por caminhos incertos entre 1950 e 1953.
Mas vale voltar ao festival de cinema de Punta del Este em 1951. Na ocasião, além de se encontrar com Alcides Ghiggia, Cantinflas foi entrevistado pelo jornalista Nobel Valentini.
Ao fim do encontro, ainda com base em especulações da época, Valentini presenteou Cantinflas com uma camisa da seleção uruguaia. A peça, no entanto, teria sido usada na decisão da Copa de 1950 por Julio Pérez.
Quem foi Julio Pérez? De volta ao livro de Eduardo Galeano:
Era chamado de Pataloca, porque se desarticulava no ar e os adversários arregalavam os olhos: não podiam acreditar que as pernas voassem por um lado e o corpo voasse por outro, longe. Depois de fintar um monte de jogadores com aquelas jogadas marotas, Julio Pérez retrocedia e repetia diabruras. Nós, torcedores, festejávamos aquele folião das canchas, e graças a ele ríamos a bandeiras desfraldadas.
Ao longo da Copa de 1950, Pataloca Pérez vestiu a camisa 8. Antes da decisão contra o Brasil, a indumentária foi roubada, e o roupeiro uruguaio precisou improvisar: pegou a camisa 18 e maquiou a numeração com uma fita.
Vale destacar que a camisa de Pérez também foi levada à capela de Santo Como, mas escapou dos ladrões. “A única camiseta que ficou foi a de Julio Pérez. Não sei o que aconteceu com os demais objetos”, disse Arcadio Ghiggia, que apontou diferenças na camisa dada por Cantinflas ao América e nas que a seleção uruguaia vestiu na decisão da Copa do Mundo de 1950.
Estaria a camisa 7 do Uruguai campeão da Copa de 1950 no México? Teria desaparecido nas mãos de ladrões? Qualquer que tenha sido o destino, Arcadio Ghiggia espera uma solução.
“Se roubaram, e se alguém tem essa camiseta, é preciso reclamá-la”, afirmou.
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