O dia 13 de abril de 2011 não vai ser esquecido tão facilmente pelo torcedor do Schalke 04. Foi nesse dia que os knappen (“mineiros”, em alemão) venceram a então campeã Inter de Milão por 2 a 1 pelas quartas de final da Liga dos Campeões da Europa e se classificaram pela primeira vez para as semifinais da competição. Uma vitória não tão categórica quanto o histórico 5 a 2 no jogo de ida em Giuseppe Meazza, mas suficiente para sagrar a equipe alemã como sensação daquela edição.
Aquela campanha na Champions League de 2010/2011 foi um dos grandes momentos da história do centenário clube de Gelsenkirchen. Mesmo eliminado pelo Manchester United nas semis, com direito a um massacrante 4 a 1 em Old Trafford, o caminho parecia promissor para a equipe azul royal.
Sob a batuta de Ralf Rangnick, aquela equipe do Schalke tinha como principal nome o atacante Raúl González, ídolo e lenda do Real Madrid. Além dele, o zagueiro Christoph Metzelder também era um dos atletas mais famosos do time. Fora isso, os jogadores mais jovens mostravam um imenso potencial, como o goleiro Manuel Neuer, o zagueiro Joel Matip e o meia Julian Draxler.
Treze anos depois, o cenário do Schalke 04 é completamente oposto ao de 2011. Na temporada 2023/2024, o time se enrolou em uma luta desesperada contra o rebaixamento para a terceira divisão alemã. Isso porque uma nova queda na pirâmide do futebol alemão não representa apenas mais um ano distante da elite; o descenso pode literalmente acabar com o clube.
Segundo a SkySports, as regras de endividamento para clubes na Alemanha variam conforme as divisões nacionais. No caso da 3. Liga, o Schalke 04 já ultrapassou o teto permitido. O que significa que, em uma possível queda, a equipe de Gelsenkirchen não conseguiria autorização para disputar a competição e teria que brigar pelo acesso vindo das divisões amadoras.
Leia também:
- O fim de uma década de hegemonia do Bayern de Munique
- A Áustria que venceu o nazismo
- Qual foi o primeiro time a colocar um patrocínio na camisa?
- 20 camisas de futebol que valem uma fortuna. Você tem alguma?
Por isso, a luta do Schalke 04 é, acima de tudo, pela sobrevivência. Mesmo sem conquistar um título alemão desde 1958 (ou seja, antes mesmo da criação da Bundesliga), a equipe é a segunda com mais sócios da Alemanha, contabilizando 178 mil associados em 2023. Nos últimos anos, o clube heptacampeão alemão era presença constante em torneios europeus. Durante décadas, o Borussia Dortmund teve os knappen como principais rivais, por conta da proximidade entre as cidades.
O que leva um time desse tamanho ao risco de extinção? No caso do Schalke 04, uma sequência de decisões equivocadas, aliadas a momentos de puro azar, empurraram-no para uma das mais graves crises de sua história.
A era Clemens Tönnies
A peça-chave para entender o que aconteceu com o Schalke 04 é Clemens Tönnies. Considerado um dos homens mais ricos da Alemanha, Tönnies é um bem-sucedido empresário da indústria da carne. Ele se tornou dirigente do Schalke 04 em 1994 e, em 2001, virou presidente do seu clube de coração.
Foi durante sua gestão que o Schalke 04 passou por uma virada e viveu seus melhores anos. Por meio de empréstimos pessoais, Tönnies ajudou a reduzir a dívida do clube e passou a investir pesado para se equiparar ao rival de Dortmund. Mas foi também durante sua gestão que as coisas saíram do controle e culminaram na crise atual.
Desde 2001, quando Tonnies tomou posse, a equipe terminou como vice-campeã da Bundesliga em quatro ocasiões: 2004/2005, 2006/2007, 2009/2010 e 2017/2018. Além disso, venceu a Copa da Alemanha duas vezes (2001/2002 e 2010/2011) e foi vice uma vez (2004/2005).
Mas foi no cenário internacional que a coisa melhorou de maneira significativa. De 2001 a 2018, o Schalke 04 disputou algum torneio europeu em praticamente todos os anos — exceto em 2009/2010 e 2017/2018. Após a histórica semifinal de 2011, a equipe sempre passou da fase de grupos das competições, seja da Liga dos Campeões ou da Liga Europa.
https://twitter.com/s04/status/1249632921549328384/
Por isso, tudo indicava que a década de 2010 seria promissora para os knappen. A cada temporada, a equipe trazia atletas de peso como Raúl, Huntelaar, Angelos Charisteas e Christoph Metzelder, para ficar apenas em alguns nomes.
Mas foi justamente essa sanha de crescer a qualquer custo que abriu um buraco nas contas do clube que viriam a assombrá-lo nos anos seguintes.
Christian Heidel e a máquina de torrar dinheiro
Para bater de frente contra o Borussia Dortmund ou contra o multicampeão Bayern de Munique, o Schalke 04 teria que investir pesado para conseguir retornos financeiros. Foi então que, em 2016, o clube contratou o executivo de futebol Christian Heidel.
Vindo do Mainz 05, o dirigente tinha grandes planos para o clube e pretendia montar um elenco competitivo para alcançar esses objetivos. Assim vieram Breel Embolo (26,5 milhões de euros ao Basel), Nabil Bentaleb (19 milhões ao Tottenham), Sebastian Rudy (16 milhões ao Bayern de Munique) e Yevhen Konoplyanka (12,5 milhões ao Sevilla). Para o comando técnico, foi escolhido Markus Weinzierl, ex-Augsburg.
Estima-se que sob administração de Heidel, o clube torrou mais de 150 milhões de euros em contratações. Mas os resultados não vieram como o esperado: naquela temporada 2016/2017, o Schalke 04 terminou na décima colocação da Bundesliga e ficou de fora das competições europeias.
Na temporada seguinte, com Domenico Tedesco como técnico, o Schalke recebeu um sopro de esperança e conseguiu terminar como vice-campeão da Bundesliga. Além disso, ficou muito perto de chegar às semifinais da Liga Europa.
Jogando contra o Ajax pelas quartas de final, a equipe blau und weiss precisava reverter uma derrota de 2 a 0 no jogo de ida em Amsterdã. Foi então que o milagre quase aconteceu: no tempo normal, Goretzka e Burgstaller marcaram 2 a 0 para o time da casa no tempo normal e levaram a partida para a prorrogação. Aos 11 minutos da prorrogação, Caligiuri ampliou para 3 a 0 e colocou o Schalke com um pé na classificação. Mas, no finzinho, Viergever e Younes diminuíram para 3 a 2, e a equipe neerlandesa avançou para a semi.
Depois disso, em 2018/2019, a situação degringolou, com o time terminando a Bundesliga na 14ª colocação. Ao fim da temporada, tanto Tedesco quanto Heidel foram demitidos do clube.
Além dos resultados negativos em campo, pesou também a maneira como o dirigente vinha negociando seus jogadores. De maneira pouco usual, suas principais promessas estavam saindo de graça.
Foi o caso de Joel Matip, que em 2016 se transferiu para o Liverpool ao fim de seu contrato. O zagueiro Sead Kolasinac foi sem custos para o Arsenal em 2017. Também aconteceu o mesmo com Leon Goretzka e com o goleiro Alexander Nübel, que foram para o Bayern de Munique.
Estima-se que, apenas com esses quatro jogadores, o Schalke 04 deixou de ganhar 100 milhões de euros. Só isso já abateria dois terços das dívidas totais do clube.
Só que os problemas de gestão não terminam por aí. As apostas altíssimas que o Schalke 04 fez fracassaram de maneira categórica. Embolo deixou o clube em 2019 com destino ao Borussia Mönchengladbach pelo valor de 11 milhões de euros — 15,5 milhões a menos do que tinham pago. Já Nabil Bentaleb foi contratado por 19 milhões de euros e saiu de graça para o Angers em 2021, após fazer apenas 50 partidas pelo clube.
Segundo estimativas do site Football Business Journal, essas contratações flopadas fizeram o Schalke 04 perder 91,5 milhões de euros. Até que então, veio a pandemia de covid-19.
O racismo, a pandemia e o fim da era Tönnies
Com o fracasso na temporada anterior, o Schalke 04 não disputara competições europeias em 2019/2020 e poderia focar apenas na liga doméstica. Mas então, veio a primeira crise: logo nos primeiros dias de agosto de 2019, Tönnies fez um comentário racista durante um evento empresarial em Paderborn.
A declaração causou revolta na Alemanha. Ex-jogadores negros do Schalke, como Gerald Asamoah e Hans Sarpei, fizeram críticas ao dirigente. Torcedores também se levantaram contra o mandatário, pedindo sua renúncia imediata. Mas o que aconteceu foi que Tönnies pediu desculpas e se licenciou do cargo por três meses, retornando ao cargo como se nada tivesse acontecido.
Só que os ventos da mudança já sopravam sobre o clube. É fato que, desde meados dos anos 2010, Tönnies vinha se preocupando mais com seus problemas particulares do que com o Schalke 04. Suas fábricas eram constantemente denunciadas por más condições de trabalho, cuja mão-de-obra era majoritariamente imigrante. Além disso, há anos vinha travando uma batalha legal contra seu sobrinho Robert Tönnies, filho do seu falecido irmão Bernd, pelo controle dos negócios da família.
Por isso, a queda parecia iminente e aconteceu menos de um ano depois, em um outro caso absurdo. Em junho de 2020, em plena pandemia de covid-19, um dos frigoríficos de Tönnies foi flagrado com mais de 1,5 mil funcionários infectados com o Sars-Cov-2. Mesmo com jogos disputados com portões fechados, mais de mil torcedores foram até o estádio pedir sua renúncia – com distanciamento social e usando máscaras, claro.
Então, no dia 30 de junho de 2020, a era Tönnies chegou ao fim. Poucos dias antes, o Schalke 04 havia perdido para o Freiburg pela última rodada da Bundesliga, marcando a 16ª partida seguida sem vitória. Apesar daquele segundo turno terrível, o Schalke não caiu e terminou a temporada 2019/2020 na 12ª colocação.
Mas aquele seria apenas o começo do inferno do clube.
Os rebaixamentos e a guerra da Ucrânia
A pandemia de covid-19 foi um duro golpe nas finanças das equipes, e no caso do Schalke 04 a situação piorou o que já era muito ruim. Com dívidas de mais de 150 milhões de euros, a ausência de público significou uma queda brutal nas receitas. Por isso, a diretoria chegou a limitar os salários em até 2,5 milhões por ano, o que motivou a saída de alguns jogadores.
Outras medidas impopulares adotadas pelo clube de Gelsenkirchen foi demitir funcionários e negar o reembolso aos torcedores que haviam comprado os ingressos para todas as partidas da temporada.
Sem poder ir ao estádio, mesmo pagando, a torcida não pode apoiar o clube em um dos momentos mais melancólicos de sua história. Na temporada 2020/2021, o Schalke só conseguiu a primeira vitória na 15ª rodada, no dia 9 de janeiro de 2021, encerrando um jejum de quase um ano sem vencer.
Mas com apenas três vitórias na temporada inteira, não foi o suficiente para se salvar do rebaixamento — mesmo faltando quatro rodadas para o fim da Bundesliga.
Após duas temporadas traumáticas, o Schalke 04 se viu tendo que fazer sua reconstrução a partir da segunda divisão alemã. Não foi uma campanha tranquila, mas uma sequência de vitórias no segundo turno do campeonato garantiu o retorno à elite alemã com título em 2022.
Só que, antes disso, outro fato histórico atravessou o caminho dos knappen. Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu o leste da Ucrânia e deu início ao conflito armado. Com isso, o Schalke 04 rompeu de imediato o patrocínio com a Gazprom, empresa estatal de gás da Rússia, jogando o restante da temporada com o nome do clube por cima da marca.
ℹ️ Following recent developments, FC Schalke 04 have decided to remove the logo of main sponsor GAZPROM from the club's shirts. It will be replaced by lettering reading ‘Schalke 04’ instead.#S04 pic.twitter.com/9kpJLRzTQ7
— FC Schalke 04 (@s04_en) February 24, 2022
A Gazprom era patrocinadora máster do Schalke 04 desde 2006, em um negócio intermediado pelo então presidente Clemens Tönnies. O empresário tinha um ótimo relacionamento com o governo russo e a injeção de recursos da estatal de gás ajudou muito no crescimento do clube.
Portanto, apesar de perder uma excelente fonte de receita, o rompimento da Gazprom era um indicativo de mudanças no clube. Após o trauma da segunda divisão, uma nova era se iniciaria na temporada 2022/2023. Uma era livre da influência de Clemens Tönnies.
A transição se mostrou difícil, diante da dívida gigantesca deixada pelo ex-mandatário. Além disso, certas práticas não mudaram. Como passou a acontecer desde a saída de Domenico Tedesco, em 2019, os técnicos seguintes não tiveram continuidade, com média de uma troca por ano.
Outro obstáculo: o fato do time ter que ser remontado a cada temporada, valendo-se de empréstimos ou de jogadores livres no mercado. Após a era da geração dourada de 2010, o Schalke 04 não conseguiu mais revelar um grande nome que rendesse um bom valor ao clube.
Assim, o retorno à Bundesliga foi a pior possível. Das 34 rodadas, o Schalke passou 26 na zona de rebaixamento. Na rodada final, a equipe poderia se salvar caso vencesse o RB Leipzig fora de casa, mas acabou tomando uma surra de 4 a 2. Assim, tal qual um “time iô-iô”, o clube de Gelsenkirchen caiu de volta à segunda divisão.
Antes do começo da temporada na Bundesliga 2, o Schalke ainda teve dificuldades para conseguir um patrocinador máster. O melhor que conseguiu foi um acordo de 3 milhões de euros com a cervejaria Veltins, que já detém os naming rights do estádio. Esse valor é bem menor do que os 15 milhões de euros anuais pagos pela Gazprom até 2022.
Após um começo ruim na Bundesliga 2, com apenas duas vitórias em sete jogos, o técnico Thomas Reis foi demitido. Em seu lugar, assumiu o belga Karel Geraerts, que estava no Union Saint-Gilloise. A mudança surtiu efeito, já que o time saiu da zona de rebaixamento, mas não o suficiente para se livrar totalmente do risco de nova queda.
Ao final da 28ª rodada, o Schalke 04 está na 14ª colocação, apenas dois pontos atrás do 16º colocado, o Kaiserslautern, que disputa os playoffs do rebaixamento. Já o 17º, Hansa Rostock, que cai direto para a terceira divisão, está há três pontos de distância.
O que dificulta a vida do time é a irregularidade. No mês de março, o Schalke chegou a surpreender o líder St. Pauli e venceu por 3 a 1, ao mesmo tempo em que foi goleado pelo Hertha Berlin por 5 a 2 duas rodadas depois.
Por isso, com sete rodadas ainda em disputa, a equipe azul royal terá que lutar rodada a rodada contra a queda para terceira divisão. Uma luta que pode significar o renascimento da instituição — ou decretar seu fim definitivo.
Comentários