“Não haverá medalhas, não terá volta olímpica, nem mesmo entrega de taça.”
É assim que o escritor e historiador do futebol Raymundo Quadros apresenta uma crônica do ludopédio carioca, a qual tenta reparar um erro cometido incontáveis vezes durante anos. O mito de uma equipe que teria sido, em uma singular oportunidade, campeã do futebol do Rio de Janeiro, em 1926, quase como uma estranha no ninho.
Em uma época onde Olarias e Madureiras lotavam de torcedores as bancadas das canchas, a façanha do clube da Rua Figueira de Mello, equipado de trajes alvos e com o nome do padroeiro dos viajantes ao peito, ocorreu em frente a um esporte em formação em terra brasileira, e não deve ser esquecida.
Mas, antes de tudo, o contexto. O football carioca vivia um período de instabilidade, causado inicialmente pela divergência entre a adoção do profissionalismo ou a manutenção das práticas amadoras, e isso gerou duas ligas distintas, a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos), entidade responsável pela organização do Campeonato Carioca desde a primeira metade da década de 20; e a LCF (Liga Carioca de Football), fundada com o intuito de estabelecer definitivamente um esporte profissional. Assim, em 1933, Botafogo, Flamengo e São Cristóvão permaneceram na amadora AMEA, enquanto America, Bangu, Fluminense e Vasco partiram para a LCF.
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Após alguns anos com dois campeões toda temporada, marcados por várias negociações e mudanças (como a adoção do profissionalismo na AMEA, que se reformulou para se tornar a Federação Metropolitana de Desportos, ou FMD), chegamos no ano de 1937, onde as equipes de Andarahy, Bangu, Botafogo, Carioca, Madureira, Vasco da Gama e o próprio São Cristóvão disputaram a competição da FMD.
Iniciado em maio, o Campeonato Carioca da FMD de 1937 teve como destaque em sua primeira rodada o embate entre os cadetes, treinado por Ademar Pimenta, que era simultaneamente treinador da Seleção Brasileira e levaria o Brasil até as semifinais da Copa do Mundo de 1938, e o Vasco da Gama, atual campeão carioca e o time a ser batido. Mas com grande atuação do keeper Walter e direito a gol olímpico, o São Cri-Cri iniciaria a campanha com vitória de 3 a 1 em casa.
O campeonato seguiu-se até o final do “Primeiro Torneio”, com a campanha invicta do São Cristóvão, sete vitórias em sete partidas, incluindo goleadas de 7 a 2 sobre o alviverde Andarahy (no tempo do zagueiro Don-don) e 6 a 2 sobre o Carioca, e um emocionante embate contra o Olaria, em match com placar final 4 a 3. Os comandados de Ademar Pimenta conquistaram por fim o primeiro turno sobre o Botafogo, em uma vitória de 3 a 0 no Estádio da Rua Figueira de Mello, e consequentemente garantiram vaga na final da competição contra o campeão do segundo turno. Mas o segundo turno nunca houve.
No final de julho, liderado pelas diretorias de America e Vasco, o esporte viu a fundação da Liga de Football do Rio de Janeiro (LFRJ), entidade pacificadora que unificou os clubes da FMD e da LCF em uma única competição. A FMD já via o seu poder se enfraquecendo, não sendo mais tão bem reportada pelos jornais locais e finalmente encerrou suas atividades dia 3 de setembro, declarando o São Cristóvão como campeão carioca. Ao mesmo tempo, o São Cri-Cri saía em excursão pelo Brasil e pela América do Sul, iniciada antes mesmo da fundação da LFRJ, e só voltaria dias depois, no mesmo mês de setembro. Portanto, o clube cadete não esteve presente em nenhuma das ocasiões, o que ajudou no esquecimento do título inclusive pelo próprio São Cristóvão.
Na sequência, o “definitivo” Campeonato Carioca, organizado pela LFRJ, iniciou, e a equipe de Figueira de Mello precisou se contentar com um quarto lugar, empatando com Botafogo e America. E a lembrança da conquista de facto do time da Zona Norte foi esvaecida pelo tempo, até ser completamente ignorada pelos órgãos oficiais da peleja brasileira.
Pego para mim o final deste texto, em ato que mescla a gratidão e o egoísmo, para agradecer ao trabalho daqueles que nos ajudam a preservar a memória da vitória dessas agremiações e colaboram para a manutenção da história de nosso tão rico futebol. Em especial, os escritores do sucinto e essencial livro O Campeão Esquecido, de Auriel de Almeida e do finado Raymundo Quadros; e que essas crônicas sejam lembradas em nossos futuros – como diz o hino do clube equipado de trajes alvos, “por teu bem, por nosso bem, pela grandeza dos esportes que esta terra tem”.
Por Lucas Luis Godoy
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