O campo, com algumas adaptações, serve para o críquete, a bola lembra a de rúgbi e o nome é futebol. Em alguns momentos, ainda, esse inusitado esporte pode ser comparado com as mais violentas lutas de MMA. Se você nunca viveu na Austrália certamente sentirá estranheza e talvez aflição ao notar o quão desprotegidos estão os atletas vestindo apenas regatas, calções e meiões (capacetes até são permitidos, mas quase ninguém usa).
Terríveis contusões e imagens fortes são bastante comuns, embora ninguém tenha morrido durante uma partida da elite desde 1946 – ufa! Esse é o futebol australiano (australian rules football na nomenclatura oficial), muito prazer.
VÁRIOS ESPORTES EM UM – COMO SURGIU
A peculiar modalidade foi desenvolvida em Melbourne como uma adaptação do futebol praticado por imigrantes ingleses, o mesmo jogado em colégios brasileiros e ao redor de todo o mundo no século XIX. É importante entender que as regras não eram padronizadas na época (apenas anos mais tarde seriam definitivamente separados o rúgbi e o “soccer” ou “association football”). Os três esportes são, portanto, dissidências da mesma recreação, um estilo primitivo de futebol que sofreu inúmeras alterações ao longo dos anos e não existe mais. Há também ligações evidentes com o futebol gaélico, popular até hoje na Irlanda.
As raízes são diversas, porém, o “pai” mais legítimo do futebol australiano é o críquete, atividade favorita de Tom Wills, autor da carta que idealizou os primeiros fundamentos. Essa foi uma verdadeira “certidão de nascimento” da nova prática esportiva, publicada em dois jornais locais no dia 10 de julho de 1858 (quase dez anos antes do surgimento do futebol americano, cuja história guarda algumas semelhanças).
Apesar de se inspirar no futebol, a intenção de Wills era manter jogadores de críquete em boa forma durante o inverno. Ele convidou apenas seus amigos para as partidas inaugurais e não imaginava estar inventando, naquele momento, uma das maiores paixões do povo australiano.
Hoje, quase 160 anos depois, o australian rules football divide com o rúgbi league a preferência esportiva no país (ganhando em alguns estados, como Western Australia e a sua região de origem, Victoria). Uma pesquisa de 2014, inclusive, aponta que há mais gente praticando o futebol inventado por Tom Wills do que rúgbi por lá, embora ambos estejam atrás do “soccer”, o futebol da bola rolando… Aí sim fomos surpreendidos!
Mas não vamos nos enganar: como escrevi no ano passado, não existe comparação entre a popularidade desses três esportes na Austrália. Enquanto o australian rules e o rúgbi atraem multidões em qualquer lugar, o futebol que nós gostamos mal passa na TV aberta e disputa espaço nos jornais com natação, críquete e até golfe. Mal comparando, é mais ou menos como o handebol no Brasil, que já foi considerado o esporte mais praticado nas escolas, mesmo longe de receber a devida atenção em outros níveis.
“SIMPLIFICANDO” AS REGRAS
Essa história é um tanto confusa, não é mesmo? O futebol australiano é essa mistura, sofreu várias influências distintas, por isso suas regras são tão complexas quanto suas origens. Mas já que você chegou até aqui, vamos aprender!
Tentarei explicar tudo resumidamente (missão ingrata). Comecemos pelo campo, que tem as mesmas medidas e é oval como o de críquete, com a diferença de ter quatro traves (duas centrais maiores) instaladas em duas extremidades. Cada time tem 18 jogadores e mais 4 reservas. Até aqui tudo bem, certo?
Ok, vamos abrir espaço para as maluquices, elas surgem já no momento das substituições. Existem variações, mas na AFL, a principal liga do esporte, funciona assim: três atletas do banco podem ser trocados por outros do campo quando o técnico bem entender, com um limite de 120 alterações. Só que um quarto suplente é diferenciado, ele inicia com um colete especial verde e, assim que entra na partida, o jogador que sair é obrigado a se vestir de vermelho e não pode mais jogar em hipótese alguma.
O sentido disso? Bem, melhor mudar de assunto…
Os jogadores podem utilizar qualquer parte do corpo para carregar a bola (um pouco menor e mais arredondada que a de rúgbi), mas precisam batê-la no chão a cada 15 metros. Não existe “try”, mais famoso lance do rúgbi, sendo o único objetivo passar a bola entre as traves, com uma pontuação que varia a cada jogada (conseguir fazê-la passar no meio das duas balizas centrais com um chute direto vale 6 pontos, o máximo possível).
Passes com as mãos (que não devem ser arremessos, o certo é esmurrar a bola, como em um saque de vôlei) e com os pés podem ser feitos em qualquer direção do campo. É permitido fazer dribles com os pés (alô, Denilson), embora depois de 15 metros seja obrigatório quicar a bola ao menos uma vez, chutá-la ou passá-la.
Quem recebe os passes, geralmente longos, costuma pular inconsequentemente, montando nos adversários, que fazem “camas de gato”, por isso muitos caem de mau jeito. As partidas começam com a bola quicada e lançada para o alto (parecido com basquete) e são divididas em quatro tempos cronometrados de 25 minutos (sendo, nesse quesito, mais semelhantes ao futebol americano do que ao rúgbi e “soccer”).
Nesse meio-tempo, há muito contato e violência, permitida para tomar a bola. Os “tackles” se parecem com os do rúgbi, feitos também pelas costas. A regra diz que o adversário pode ser atingido na região abaixo do ombros até os joelhos e não há problemas se ele for atirado no chão, desde que a jogada não seja “reckless” (algo como “irresponsável”, a tal entrada perigosa no futebol).
Essas intepretações competem aos juízes. Aliás, o nome popular deles é “umpires” e geralmente são sete: um “central” (único dentro do campo), dois responsáveis por dúvidas sobre “gols”, localizados próximos às traves, e quatro que correm nos entornos para dizer quando a bola saiu. Jogos profissionais também contam com um árbitro reserva, caso seja necessária alguma substituição, e outras duas pessoas apenas responsáveis por controlar a quantidade de jogadores (caso um time espertinho queira atuar com um 19º atleta ou fazer mais de 120 substituições).
Basicamente é isso. Se você chegou até aqui e conseguiu visualizar o jogo em sua mente, parabéns (talvez tenha sido australiano em alguma outra encarnação).
GANHANDO O MUNDO E AS MULHERES
De “bônus” aos contatos violentos permitidos, algumas partidas de futebol australiano também incluem golpes como estrangulamento entre jogadores mais exaltados. Muito raramente há mortes em jogos transmitidos pela TV, mas ao menos duas fatalidades foram registradas recentemente em ligas menores e amadoras.
Apesar de toda a virilidade, os australianos, em sua maioria, sempre se orgulharam da “nobreza” do esporte, um verdadeiro símbolo nacional. Por outro lado, recentes casos envolvendo racismo e ataques de torcedores a técnicos têm gerado crescentes questionamentos entre os fãs.
Fato é que o futebol australiano representa uma indústria gigante em seu país de origem, apaixonado por esportes e competitividade. Os públicos são incríveis (em 2014, por exemplo, a quantidade de pagantes nas arquibancadas do principal campeonato foi de 6,5 milhões de pessoas, equivalente a ¼ da população australiana), as audiências estão entre as maiores da televisão e filmes e músicas populares são dedicadas ao tema.
Nesse universo de fama e mobilização de massas, um dos maiores ídolos tem ligação com o Brasil: recém-transferido do Collingwood para o Melbourne FC, Harry O’Brien – também conhecido por seu nome verdadeiro, Heritie Lumumba – nasceu no Rio de Janeiro, filho de mãe brasileira e pai congolês.
Ele se mudou para a região de Perth em definitivo com sete anos de idade, criado por um padrasto australiano. Foi duas vezes campeão nacional como uma das maiores estrelas da sua equipe e, por sua elogiada conduta fora do campo, representou a Austrália em uma visita do Dalai Lama. Apesar de ter vivido pouco no país natal, Harry fala português e tem tatuados no braço o símbolo do Flamengo, o Cristo Redentor e uma favela.
O caso dele não é exclusivo. Em um país repleto de imigrantes, em média 15% dos jogadores da principal liga nasceram fora da Austrália ou possuem pais estrangeiros. Aos poucos, inclusive, o futebol australiano está transcendendo as fronteiras, já existindo, desde 2002, uma liga internacional da modalidade, disputada a cada três anos por 18 seleções. As maiores “potências” são duas outras nações da Oceania, Papua-Nova Guiné e Nova Zelândia, além da Irlanda.
Há também uma versão feminina do Mundial, jogada desde 2011, prova de que a violência não intimida nenhum gênero. A tradição já é antiga: a primeira partida com mulheres foi realizada em 1917 e, desde 1981, há uma liga profissional australiana. As regras são iguais, geralmente apenas a bola é menor e a os jogos mais curtos.
QUEM SABE UM DIA PEGA NO BRASIL…
Quer passar a acompanhar o esporte? O principal campeonato é a Australian Football League (AFL), disputada desde 1990 com esse nome, mas que é uma continuação da Victorian Football League, fundada em 1897, a princípio predominantemente com equipes da região de Melbourne.
Em 2015, a competição conta com 18 clubes e vai de abril a outubro, quando está marcada a Grand Final, uma espécie de Super Bowl australiano, sempre disputada no Melbourne Cricket Ground, com capacidade para 100 mil pessoas.
Os maiores campeões são (com números de títulos entre parênteses): Essendon (16), Carlton (16), Collingwood (15), Hawthorn (atual bicampeão, somando 12 taças) e Melbourne F.C. (12). Por números de temporadas disputadas, os mais tradicionais são: Collingwood (118), Carlton (118), Sydney (117), St. Kilda (116) e Essendon (116). A maior “fila” de títulos foi encerrada pelo Sydney em 2005, após 72 anos e cinco vice-campeonatos.
Atualmente, o “grande” que amarga o maior jejum é o Melbourne F.C., que não ganha há 50 anos, seguido de perto pelo rival St. Kilda (48). Só houve um tetracampeão consecutivo, o Collingwood, de 1927 a 1930. A maior “goleada” data de 1979: Fitzroy 238 x 48 Melbourne F.C. (ou 36.22 x 6.12, em uma outra forma de contar placares, mais uma esquisitice). O maior público é o da Grand Final de 1970 (121 mil pessoas no jogo entre Carlton e Collingwood). Fora da Austrália, um Sydney x Melbourne F.C. atraiu 32 mil pessoas no Canadá, em 1987.
Pronto, você agora sabe tudo sobre futebol australiano. Já pode começar um movimento para que nossos canais a cabo transmitam esse esporte maluco, que algum apelo deve ter.
É mais ou menos como dizia um antigo slogan do Vegemite, pasta de gosto horrível muito apreciada na Austrállia (e praticamente só lá). Um comercial dos anos 80 explicava que 15 milhões de pessoas (população australiana da época) não podiam estar enganadas. A lógica é a mesma: tantos fãs apaixonados não podem estar errados. Viva o australian rules football!
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