Há mais de 65 anos, em um 24 de junho, a seleção brasileira abria a Copa de 1950 goleando o México por 4 a 0. Você provavelmente conhece várias histórias daquele Mundial, como a empolgação do país com a abertura do Maracanã, aquela surpreendente vitória dos Estados Unidos contra a então imbatível Inglaterra e, claro, cada detalhe da nossa trágica derrota na final.
Esses momentos se tornaram clássicos e sempre serão repetidos quando falarmos do torneio. Mas um evento tão importante para o esporte brasileiro ainda guarda certas memórias “secretas”, pouco ou nada comentadas ao longo das décadas seguintes. Lá vão algumas delas:
Não joga o Brasil, estádio vazio
Considerando a contagem geral de público, a Copa de 1950 foi um enorme sucesso. A média de 47.511 pessoas por partida foi a maior da história até então e não faz feio se comparada com as edições mais recentes do torneio, nas quais há procura maciça e mobilização internacional por ingressos. No Mundial de 2014, por exemplo, o número é apenas um pouco maior: 53.591 presentes em cada jogo e nenhuma arquibancada vazia.
Porém, uma análise mais criteriosa dos dados rapidamente desfaz a impressão de que 1950 foi uma Copa tão popular quanto 2014. A possibilidade de abrigar multidões acima de 100 mil pessoas quando o Brasil atuava no Maracanã distorce gritantemente a média.
Nos seis compromissos da seleção brasileira (cinco realizados no Maracanã e um no Pacaembu), o público total foi de 731.618 (ou seja, cerca de 121.936 por jogo). Mas a situação é muito diferente quando consideramos as outras 16 partidas do campeonato (aquelas que não contaram com os anfitriões).
Nesse caso o maior público é o de Uruguai 2 x 2 Espanha (44.802 pessoas no Pacaembu, na abertura do quadrangular final) e o menor contabiliza pouco mais de 3.500 no Estádio dos Eucaliptos, em Porto Alegre, para assistir Suíça 2 x 1 México na primeira fase. A soma total sem a seleção brasileira em campo é de 313.628 (média de apenas 19.601 espectadores por jogo, muito aquém de um grande evento internacional).
Seleções desistentes
O slogan “Copa das Copas”, criado para exaltar a edição de 2014, poderia muito bem se referir à de 1950 – pelo menos se levarmos em conta os atrativos da competição: o Brasil, longe dos escombros da Segunda Guerra Mundial, construíra o maior estádio do mundo para receber o evento, que pela primeira contaria com a presença da Inglaterra, teoricamente a grande força futebolística do planeta. Quem não gostaria de jogar um campeonato assim?
Quase ninguém, naquele tempo não era fácil garantir com antecedência o tamanho de uma Copa do Mundo. Qualquer time poderia desistir a qualquer momento, por motivos variados, como falta de recursos, desinteresse ou desavenças com outras nações participantes. Hoje isso parece inimaginável, mas em 1950 a FIFA teve que se desdobrar para evitar o esvaziamento do seu principal torneio.
Até a Itália, classificada automaticamente como defensora do título de 1938, ameaçou não viajar para a América do Sul em meio à crise financeira do pós-guerra. Além da ausente Alemanha, excluída por conta dos crimes nazistas, nada menos que sete equipes desistiram das Eliminatórias europeias em algum momento (Áustria, Bélgica, Escócia, França, Portugal, Síria – que disputou as Eliminatórias na Europa nesta ocasião – e Turquia), a maioria por falta de dinheiro. Com tantas recusas (algumas em cima da hora) não foi possível preencher todas as vagas destinadas à Europa, fator que fez o número de participantes da Copa cair de 16 para 13.
Na Ásia não foi diferente, com quatro seleções seguindo o mesmo caminho (Birmânia – atual Myanmar -, Filipinas, Indonésia e Índia). No caso indiano, a justificativa mais aceita é de que a ausência foi motivada por questões financeiras e a impossibilidade de se custear uma viagem ao Brasil, mas existe uma versão mais envolvente: há quem sustente que o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru ordenou que o país desistisse da Copa, por não concordar com a lei que proibia a prática de futebol descalço, estilo adotado pela seleção do país nos Jogos Olímpicos de 1948.
Em declaração reproduzida no livro Glória Roubada, do jornalista Edgardo Martolio, o maior craque indiano da época, Sailen Manna, lamenta a oportunidade perdida: “Nehru usou o coração e seu orgulho impediu a nossa possível façanha. A Índia tinha uma boa equipe. Se ganhássemos dos ingleses jogando descalços ninguém riria de nós.”
E teve até vizinho desistente… Mesmo na América do Sul, sem a desculpa das despesas de viagem, três seleções boicotaram a competição: Argentina (por conflito com a FIFA, ligado ao interesse de sediar o Mundial no lugar do Brasil, e protestos pela debandada de craques argentinos para a liga pirata colombiana) , Equador e Peru.
Ou seja, 17 países não possuem a Copa de 50 no currículo por vontade própria.
O Pacaembuzazzo
O favoritismo do Brasil na final contra o Uruguai era inevitável. No quadrangular decisivo, as duas seleções haviam jogado anteriormente contra suecos e espanhóis. Enquanto os brasileiros massacraram duas vezes (respectivamente 7 a 1 e 6 a 1), os cisplatinos sofreram nas duas partidas (2 a 2 e 3 a 2). Resultados tão sensacionais inflaram a confiança nacional a um nível exorbitante, parecia que ninguém teria condições de derrotar um time tão ofensivo e poderoso jogando em casa.
Depois de duas grandes atuações, a seleção brasileira era considerada muito superior a qualquer adversário na reta final da Copa, todo o país estava deslumbrado. Àquela altura, quase ninguém mais se lembrava do início da competição, quando as coisas não foram tão fáceis assim…
Na sua segunda partida, 18 dias antes do Maracanazzo, o Brasil empatou com a Suíça diante de 42 mil decepcionados torcedores no Pacaembu. O silêncio das arquibancadas e o trauma não se equiparam com a derrota na decisão, mas poderiam ter servido de alerta.
Os suíços que calaram a torcida brasileira não jogavam tão retrancados quanto nas Copas de 1938 e 1954, quando popularizaram o esquema tático conhecido como “ferrolho”. Em 1950 a seleção helvética era comandada pelo jovem treinador Franco Andreoli, então com 35 anos, e seus onze titulares atuavam no futebol local. Era um time tão modesto que havia perdido por 3 a 0 para Iugoslávia na rodada anterior, porém, mesmo assim, conseguiu fazer frente à seleção brasileira.
Naquele dia o Brasil jogou mal, mas começou eficiente, abrindo o placar logo aos 3 minutos, com Alfredo. Os europeus empataram pouco depois, em jogada de Jacky Fatton, e, antes do fim do primeiro tempo, Baltazar voltou a colocar os anfitriões em vantagem. Depois disso, o placar do Pacaembu só voltou a contabilizar um gol a dois minutos do fim do jogo, quando de novo Fatton, atacante do Servette, venceu o goleiro Barbosa e igualou o marcador. Não houve tempo para reagir, placar final: Brasil 2 x 2 Suíça.
Era um sinal de que os brasileiros deveriam jogar o resto do torneio com humildade, pois mesmo uma equipe figurante se mostrou capaz de estragar a festa. A imprensa cobrou o treinador Flávio Costa após a partida, mas depois esqueceu as fraquezas da equipe até a final, quando o Brasil foi cruelmente lembrado de que não era invencível.
O carrasco Óscar Míguez
Três nomes costumam se sobressair quando pensamos na seleção uruguaia de 50: Obdulio Varela, capitão e grande craque da equipe; Juan Alberto Schiaffino, autor do primeiro gol da final; e, claro, Alcides Ghiggia, responsável por calar o Maracanã com o chute sem ângulo que passou pelo goleiro Barbosa. Quase ninguém se lembra daquele que foi o artilheiro da Celeste no campeonato e tornou possível o Maracanazzo graças a um gol a 5 minutos do fim da partida anterior: Óscar Míguez é o astro esquecido.
Uruguai e Suécia fizeram um jogo bastante disputado no Pacaembu, na segunda rodada do quadrangular final. Aos 33 minutos do segundo tempo, os suecos venciam e eliminavam a equipe sul-americana. Foi quando Míguez igualou o marcador e, nos minutos finais, desempatou. Se aquele jogo terminasse 2 x 2, essa seria a classificação antes da rodada final (na época a vitória valia dois pontos):
1 – Brasil – 4 pontos
2 – Uruguai – 2 pontos
3 – Espanha – 1 ponto
4 – Suécia – 1 ponto
Ou seja, ninguém mais poderia passar o Brasil no número de pontos. O Uruguai poderia no máximo igualar a pontuação brasileira com uma vitória no Maracanã na última rodada. O regulamento previa, nesse caso de duas seleções em igualdade de pontos, que fosse disputada uma partida extra.
Ou seja: o Brasil teria que ser derrotado duas vezes diante dos uruguaios para perder aquela Copa – um tropeço dos anfitriões, como aconteceu no Maracanazzo, teria conserto e uma outra partida para se recuperar.
Migueí foi o carrasco que tornou menos complexa a missão uruguaia. Graças ao seu gol no fim contra os suecos, uma vitória bastou para tornar sua seleção bicampeã do mundo.
Apesar de passar em branco na final, ele balançou as redes cinco vezes na Copa e foi vice-artilheiro da competição, atrás apenas do brasileiro Ademir. Poucos fora do Uruguai lembraram desses feitos quando o atacante, um dos maiores ídolos da história do Peñarol, morreu aos 79 anos em 2006.
Veja, abaixo, os gols desse Uruguai 3 x 2 Suécia, que mudaram os rumos da Copa. No mesmo horário, o Brasil goleava a Espanha por 6 x 1 no Maracanã. Até Míguez marcar a cinco minutos do fim, nossa seleção estava praticamente se sagrando campeã ao som de “touradas em Madri“.
… E para quem não entendeu a imagem do topo:
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