Antes da rodada de setembro nas Eliminatórias para Copa do Mundo, listamos as seleções estreantes que tinham chances reais de disputarem o Mundial em 2018. A Síria foi citada apenas no pé da matéria, por mera formalidade – afinal, pela lógica o país seria eliminado rapidamente, pensamos. E erramos.
De fato era difícil: a Síria teria que torcer por tropeços dos favoritos Coreia do Sul e Uzbequistão para manter vivas as esperanças de classificação.
Era improvável, mas aconteceu: a Síria conseguiu uma vaga na repescagem asiática para a próxima Copa do Mundo. Foi no sufoco, com gol no final em jogo contra o Irã, mas deu certo.
GRUPO A – TERCEIRA FASE DAS ELIMINATÓRIAS ASIÁTICAS
- Irã – 22 pontos (classificado para a Copa)
- Coreia do Sul – 15 pontos (classificada para a Copa)
- Síria – 13 pontos (+1 no saldo de gols)
- Uzbequistão – 13 pontos (-1 no saldo de gols)
- China – 12 pontos (-3 no saldo de gols)
- Catar – 7 pontos (já eliminado)
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Agora o desafio continua: a Síria vai enfrentar a Austrália. Se conseguir vencer após dois jogos, terá que encarar uma equipe da Concacaf – pode ser Costa Rica (improvável), Panamá, Estados Unidos ou Honduras.
Será um caminho difícil. Ainda assim, a essa altura, o que é impossível para o futebol sírio?
Nos últimos anos, praticamente tudo que se noticiou sobre o país está relacionado à Guerra Civil, que já deixou cerca de 400 mil mortos e ocasionou a maior diáspora das últimas décadas, com milhões de refugiados buscando abrigo em territórios estrangeiros.
Vamos fazer algo diferente e falar de esporte – embora, claro, seja impossível separá-lo da tragédia em curso. Confira dez fatos sobre o futebol sírio:
Longe de casa
A seleção síria não disputa uma partida em seu país desde 22 de dezembro de 2010, quando foi derrotada pelo Iraque por 1 a 0, em Damasco. Naquele mesmo ano, em janeiro, chegou a receber a Suécia em um amistoso.
Com a explosão da guerra civil, no início de 2011, as cidades sírias passaram a ser consideradas inseguras para receber eventos esportivos internacionais. Desde então, a equipe nacional joga como mandante em campos neutros (o que torna ainda mais incrível sua campanha nas Eliminatórias). Países como Jordânia, Irã e Omã abrigaram algumas partidas, mas hoje a Malásia é a “casa” oficial do time.
A escolha por uma sede tão distante tem certa lógica. Nações mais próximas se recusaram a acolher a seleção após a intensificação da guerra civil, em sanção ao governo do ditador Bashar al-Assad.
Macau, famosa por seus cassinos e atrações de luxo, chegou a oferecer cerca de US$ 300 mil para receber partidas dos sírios contra China e Coreia do Sul, visando retorno turístico – mas as negações não evoluíram, possivelmente por temor de ataques terroristas e até às dificuldades de se realizar pagamentos regularizados a entidades sírias, em meio a tantos bloqueios internacionais.
Histórico nas Eliminatórias
A Síria já disputou 14 Eliminatórias para a Copa do Mundo – a primeira delas antes da edição de 1950, quando fez parte do grupo europeu. O país nunca passou perto de uma classificação, mas é notória a evolução nas campanhas recentes.
No classificatório para o torneio de 2010, goleou a Indonésia por 7 a 0 e quase avançou à fase final do torneio. Na trajetória de 2014, fez 6 a 1 contra o Tajiquistão no resultado acumulado do primeiro playoff, porém acabou eliminada por conta da escalação de um jogador irregular.
Olimpíadas de Moscou
Os sírios sonham em jogar a sua primeira Copa na Rússia, justamente o país onde disputaram seu único campeonato intercontinental de primeira linha. Em 1980, a seleção participou do torneio de futebol nas Olimpíadas de Moscou, beneficiada pelas desistências de Malásia e Irã – que conquistaram as vagas no Pré-Olímpico, mas aderiram ao boicote contra os Jogos na União Soviética.
O ponto alto da campanha foi um empate sem gols com a Espanha, que garantiu o único ponto da Síria na competição. Nos outros jogos, derrotas por 3 a 0 para a Argélia; e por 5 a 0 para a Alemanha Oriental.
Título em meio à guerra
Tristemente, as melhores campanhas da história da seleção síria coincidem com a Guerra Civil. Além de uma histórica vitória contra a Arábia Saudita, na Copa da Ásia de 2011, o país conquistou no período o seu título mais relevante nos últimos 60 anos: o troféu da Copa das Nações do Oeste da Ásia, em 2012 – superando os rivais regionais Jordânia, Irã, Bahrein e Iraque.
No passado, a única taça de importância equivalente foi a dos Jogos Pan-Arábicos, em 1957, quando os sírios bateram seleções como Marrocos e Tunísia.
Jogadores fora do país
Dos 27 convocados pelo treinador Ayman Hakeen para os quatro últimos jogos (dois amistosos e duas partidas das Eliminatórias), dez atuam em clubes sírios. Os outros se dividem por ligas de países próximos como Iraque, Ilhas Maldivas, Omã, Catar, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Egito e Arábia Saudita. Apenas um atua na milionária Super Liga Chinesa: o zagueiro Ahmad Al Salih, do Henan Jianye.
Um dos maiores ídolos da história do futebol local – com mais de 50 partidas pela seleção e seis títulos sírios pelo Al-Jaish – o hoje assistente técnico Tarek Jabban declarou, em entrevista à BBC, que a seleção “precisa de jogadores atuando fora da Síria”.
No entanto, há casos como o do meia Osama Omari, considerado um dos mais talentosos da geração atual e que não pode se transferir para outro país, pois foi recrutado para o Exército Sírio e é obrigado a defender o Al-Wahda, time do Ministério da Defesa.
Um campeonato em ruínas
A Guerra Civil causou a suspensão de apenas uma temporada do Campeonato Sírio, em 2010/11. Desde então, o torneio vem sendo disputado, apesar das condições calamitosas. Quase todas as partidas são concentradas em cidades menos afetadas pelo conflito, como Damasco e Latakia – além de Aleppo e Homs, recentemente recuperadas pelas forças do governo.
Embora jogada em regiões “mais tranquilas” do país, a competição obviamente não transcorre em normalidade. É comum que jogos terminem em W.O. e os públicos costumam ser muito baixos (até pelo temor de que grandes aglomerações facilitem ataques terroristas).
Segundo a BBC, um jogador de destaque costuma receber salários mensais de aproximadamente US$ 200 (cerca de R$ 620), uma renda considerada alta no atual momento do país. O clube campeão é premiado como US$ 10 mil (um pouco mais de R$ 31.400). Em certos jogos das Eliminatórias Asiáticas, atletas da seleção chegaram a receber, individualmente, bichos de US$ 1 mil (mais de R$ 3 mil) por vitórias.
Os mais vitoriosos clubes locais são o Al-Jaish (de Damasco, atual tricampeão e que já somou 15 títulos nacionais), o Al-Karamah (de Homs, com oito taças) e o Al-Ittihad (de Aleppo, seis vezes vencedor). A primeira edição do torneio foi realizada em 1966.
Brasileiro na Síria
Por razões evidentes, nenhum atleta estrangeiro jogou o Campeonato Sírio na temporada 2016/17. Há alguns anos, ainda era possível encontrá-los – inclusive um brasileiro.
Edmar Figueira, atacante que já atuou em países distintos como Suíça, Índia, Costa Rica e Armênia, defendeu o Al-Shorta – então campeão nacional -, no ano de 2013, vivenciando os horrores da guerra.
“Quando cheguei, a cada 5 minutos ouvia bombas explodindo ao redor da cidade, uma loucura. Eu morava em um hotel no centro de Damasco, e perto dali houve um atentado com mais de 100 mortos. Durante o período que estive lá a cidade permaneceu com várias áreas interditadas, tinha muitas barreiras para revistar os carros, era perigoso andar pelas ruas”, relatou, em entrevista ao Globo Esporte.
No mesmo período em que Ferreira esteve no país, o atacante Youssef Suleiman, do Al-Wathbah, morreu por conta da explosão de morteiros próximos ao estádio Tishreen, em Damasco.
Futebol feminino
Mais de dez anos antes do início da guerra, em 2005, a seleção feminina da Síria disputou a sua primeira partida oficial – e fez bonito logo de cara, com a terceira colocação no Campeonato das Nações do Oeste da Ásia. Mesmo com forte resistência no país, a equipe seguiu disputando competições até 2011, quando deixou de existir com o início dos conflitos.
Após seis anos sem atuar, as jogadoras sírias voltaram a se reunir para participar das Eliminatórias da Copa da Ásia, disputada no Vietnã, em abril. A campanha refletiu as dificuldades do esporte no país (derrotas por 1 a 0 para Cingapura; 11 a 0 para o Vietnã; 14 a 0 para Myanmar; e 12 a 0 para o Irã), mas o renascimento do time representa uma esperança. Entre refugiados, times femininos também foram montados recentemente.
Instrumento da ditadura
A seleção síria deve ser exaltada pela superação dos jogadores e o que pode representar na autoestima de um povo devastado, mas um fato não pode ser encoberto: o time é apoiado pelo ditador Bashar al-Assad, que governa o país desde 2000, teve sua renúncia reivindicada na Primavera Árabe de 2011 (marco do início da Guerra Civil) e hoje é acusado de usar armas químicas contra a população.
Em novembro de 2015, quando a Síria alcançou sua vaga na terceira fase das Eliminatórias Asiáticas, o então treinador Fajr Ibrahim dedicou o feito a Assad. O sucesso da seleção é usado como propaganda pelo governo, mesmo que nem todos seus integrantes necessariamente concordem com a política vigente.
Um caso emblemático é o do atacante Firas al-Khatib. Por cinco anos, ele boicotou convocações, em protesto contra o regime do ditador, que teria bombardeado a cidade natal dele. Recentemente, o atleta voltou a atuar, mas não exatamente por patriotismo. “Eu tenho medo. Na Síria você pode ser morto pelo que você pensa”, declarou à ESPN americana.
Ainda segundo a emissora, um levantamento do jornalista Anas Ammo aponta que pelo menos 38 atletas das duas primeiras divisões sírias já foram acuados pelo governo de Assad, incluindo registros de tortura. Outros 13 jogadores profissionais estão desaparecidos, possivelmente mortos pelos movimentos que disputam o poder no país – o próprio governo, o opositor Exército Livre da Síria ou o Estado Islâmico.
A ONG Syrian Network for Human Rights (Rede Síria dos Direitos Humanos) acusou formalmente o ditador de “utilizar atletas e atividades esportivas (…) em benefício de suas práticas opressivas”. Nos estádios das cidades controladas pelo governo, há grandes cartazes com a figura de Assad e equipes da liga local já entraram em campo com faixas de apoio ao regime.
Boicote à seleção
Vivendo no exterior, alguns dos mais renomados esportistas sírias ainda boicotam as entidades esportivas – mesmo temerosos por suas famílias que seguem no país. Um caso do futebol é o atacante Mohannad Ibrahim, que fez carreira em países como República Tcheca, Jordânia e Omã e não veste a camisa da seleção desde 2011.
Ibrahim, no entanto, declara que sua postura se deve a razões pessoais (e não abertamente políticas). “Claro que gostaria de jogar pela seleção, mas há condições que me forçam a recusar as convocações. Peço desculpas ao time, desejo sorte a eles. Em geral, a situação econômica na Síria é complicada e isso reflete no esporte. Sei de jogadores que enfrentam situações muito difíceis para viver”, explicou à BBC.
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