Romário é foda. E não há outra palavra com sentido tão amplo para descrever o Baixinho.
E entre tantos feitos e casos que tornaram Romário um cara foda, um deles costuma vir à tona quando se fala de sua relação com o Carnaval: a história de que conseguiu ser liberado pelo técnico Johan Cruyff, nos tempos de Barcelona, para viajar e curtir a folia no Rio de Janeiro.
Não se engane: o próprio Romário gosta dessa história, como mostra uma postagem na conta do Facebook do ex-camisa 11 em novembro de 2019.
A história está aí, mas vale o registro resumido.
Nos tempos de Barcelona, Romário pediu ao holandês Johan Cruyff, então treinador do time catalão, para ganhar uma folga. A meta seria viajar ao Brasil para curtir o Carnaval.
Cruyff resistiu, mas fez uma contraproposta: se Romário fizesse dois gols no próximo jogo, seria liberado para viajar. Resultado: Romário fez três gols no primeiro tempo e saiu no intervalo da partida direto para o aeroporto.
Tudo está bem, mas… Será que essa história é real? Vamos por partes.
Johan Cruyff foi técnico do Barcelona entre 1988 e 1996, enquanto Romário atuou no clube por duas temporadas, entre 1993 e 1995. Desta forma, o episódio só poderia ter acontecido em duas ocasiões: nos Carnavais de 1994 e de 1995.
Vamos lembrar o que aconteceu em cada um dos anos?
Foi em 1994?
Em 1994, o Carnaval foi comemorado em 15 de fevereiro – como de costume, uma terça-feira. Os desfiles do Grupo Especial do Rio de Janeiro aconteceram nos dias 13 e 14. Neste caso, o jogo em questão teria que ter acontecido no final de semana dos dias 12 e 13 de fevereiro.
No dia 3 de fevereiro, o Barcelona visitou o Real Betis pela Copa do Rei, perdeu por 1 a 0 e foi eliminado. Depois, pelo Campeonato Espanhol, enfrentou o Athletic Bilbao no dia 6 (derrota por 3 a 2 no Camp Nou) e o Zaragoza no dia 13 (derrota por 6 a 3, com dois gols de Romário). Será que foi isso?
O clima entre Romário e Cruyff andava meio azedo naquele mês de fevereiro, e o tumulto nas arquibancadas de La Romareda naquela vitória do Zaragoza não deixou muito clima de festa. Além disso, o Baixinho até marcou mais de um gol naquela partida, mas um em cada tempo.
Conclusão: tudo indica que não foi naquele Carnaval que Romário ganhou a folga.
Foi em 1995?
A conta é a mesma. Em 1995, o Carnaval foi comemorado no dia 28 de fevereiro, terça-feira. O Grupo Especial desfilou nos dias 26 e 27.
Só que o cálculo deste ano é mais fácil de fazer. Acertado com o Flamengo, Romário se despediu do Barça em 13 de janeiro daquele ano — bem antes de qualquer autorização necessária de Cruyff para sacolejar.
Ou seja: também não foi em 1995.
Mas espera aí!
Em entrevista ao jornal francês L’Équipe em 2012, o próprio Cruyff deu sua versão da história. Que é a mesma de Romário.
“Uma vez, ele veio me perguntar se poderia faltar a dois dias de treinos para voltar ao Brasil. Deveria ser Carnaval no Rio de Janeiro. Eu respondi: ‘se você fizer dois gols amanhã, te dou dois dias a mais de descanso que o restante da equipe’. No dia seguinte, ele marcou seu segundo gol com 20 minutos de jogo e imediatamente fez um gesto para mim pedindo para sair. Ele me disse: ‘Treinador, meu avião sai em menos de uma hora'”, contou o holandês.
Uma expressão importante na declaração é o “deveria”. “Deveria ser Carnaval no Rio de Janeiro”, afirmou o ex-técnico. Ou seja: não necessariamente a folga teria rolado antes da folia de começo de ano.
Então vamos tentar de outra maneira.
Segundo o site ZeroZero.pt, Romário fez cinco hat-tricks na temporada 1993/1994. A saber:
- 5/9/1993: Barcelona 3 x 0 Real Sociedad (Campeonato Espanhol)
- 30/10/1993: Atlético de Madri 4 x 3 Barcelona (Campeonato Espanhol)
- 8/1/1994: Barcelona 5 x 0 Real Madrid (Campeonato Espanhol)
- 19/2/1994: Barcelona 8 x 1 Osasuna (Campeonato Espanhol)
- 12/3/1994: Barcelona 5 x 3 Atlético de Madri (Campeonato Espanhol)
Segundo os dados do site, em todas as cinco partidas, Romário atuou os 90 minutos. E, mais importante, estava de volta ao time já na partida seguinte, menos de uma semana depois. O maior intervalo aconteceu após o 3 a 0 na Real Sociedad: seis dias depois, jogou os 90 minutos de um 0 a 0 contra o Albacete pela segunda rodada do Espanhol.
No segundo semestre de 1994, quando defendeu o Barça na temporada 1994/1995, não chegou a marcar três vezes no mesmo jogo. Seu melhor desempenho foi em 8 de outubro de 1994: dois gols na vitória em casa por 4 a 3 sobre o Atlético de Madri.
Última chance: será que…?
OK, um último pente fino. E nos jogos em que ele marcou dois gols, como disse Cruyff em 2012?
Também segundo o ZeroZero.pt, foram quatro jogos na temporada 1993/1994 nos quais Romário marcou dois gols em cada. A saber:
- 3/10/1993: Osasuna 2 x 3 Barcelona (Campeonato Espanhol)
- 10/11/1993: Tenerife 2 x 3 Barcelona (Campeonato Espanhol)
- 13/2/1994: Zaragoza 6 x 3 Barcelona (Campeonato Espanhol)
- 1/5/1994: Barcelona 4 x 0 Sporting Gijón (Campeonato Espanhol)
Em todos eles, novamente, Romário esteve em campo durante os 90 minutos. E sempre em campo novamente menos de sete dias depois para a partida seguinte.
Com uma exceção: depois da vitória sobre o Tenerife em 10 de novembro, Romário – que marcou um gol em cada tempo no duelo em questão – só entrou em campo com o Barça 10 dias depois, na rodada seguinte do Espanhol, para enfrentar o Lleida. Neste intervalo, a Espanha jogou em 17 de novembro com a Dinamarca pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994 (e venceu por 1 a 0).
Mas uma curiosidade: neste intervalo, o Jornal do Brasil registrou uma vinda de Romário ao Brasil. A viagem foi rápida, e ele voltou à Espanha já no dia 13 à noite.
Será este o jogo cercado de folclore que Romário e Cruyff citaram?
Ou será que o relato é apenas lenda?
Qualquer que seja a resposta, o que dá para concluir: é bem provável que Cruyff tenha dado uma folga ou outra para Romário, especialmente após boas apresentações. Mas o Baixinho não deixou qualquer jogo no Barcelona no intervalo após marcar dois (ou mais) gols para curtir o Carnaval.
Mas convenhamos: a história é deliciosa e a falta de detalhes abre margem para especulações sobre o que teria ocorrido de verdade.
Comentários