Desde que a Série B do Brasileirão passou a ser disputada em pontos corridos, em 2006, até 2022, o estado de São Paulo já teve 16 times fora do rol dos quatro maiores e mais ricos disputando o torneio: Botafogo, Bragantino, Grêmio Barueri, Grêmio Novorizontino, Guarani, Guaratinguetá (incluindo Americana), Ituano, Marília, Mogi Mirim, Oeste, Paulista, Ponte Preta, Portuguesa, Santo André, São Bento e São Caetano.
Neste mesmo período, quantos times mineiros jogaram a Série B, fora Atlético, Cruzeiro e América? Quatro: Boa, Tupi, Ipatinga e Tombense. E quantos clubes do estado do Rio de Janeiro já jogaram a competição? Fora os 4 principais, apenas dois – e ambos rebaixados.
Na Série C, apenas um clube conseguiu ter uma maior estabilidade no formato atual: o Volta Redonda, que chegou à competição em 2017. Somente Macaé e Madureira estiveram tão estáveis quanto o Voltaço, mas só o clube do sul fluminense possui calendário cheio em 2022. Os outros têm calendário de apenas três meses, a não ser que se classifiquem para a quarta divisão nacional.
Na Série D de 2021, a participação dos clubes cariocas e fluminenses foi apagada. Apenas o Bangu conseguiu passar de fase, sendo eliminado para o Joinville.
Por que os times pequenos do Rio, que outrora frequentavam a Série B, simplesmente ficaram para trás? Há algumas causas que podem explicar este abismo. E acredite: as raízes deste problema vêm da época da fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
Resistência à entrada dos times do interior
Durante muitos anos, existiram dois campeonatos no território que corresponde ao atual estado do Rio de Janeiro. O principal deles era o Carioca, disputado desde 1906 e que reunia apenas clubes da cidade do Rio – à época, Distrito Federal. Em raros casos, eram aceitos times de fora do DF, como aconteceu com o Rio Cricket e o Canto do Rio, ambos clubes de Niterói.
Já o Campeonato Fluminense sempre foi extremamente bagunçado. Durante os primeiros anos, foi disputado por times de Niterói e sua área metropolitana. Em 1928, passou a ser um campeonato de seleções municipais e só em 1941 voltou a ser jogado por clubes. O profissionalismo foi adotado muito tardiamente, em 1951, 18 anos após os times da então capital federal virarem profissionais.
Leia também:
- Neto no Bangu em 1986: você se lembra?
- Manufatora Atlético Clube: o brilho de uma estrela que não se apaga
- Tonico Pereira: ator e “Vaca Brava” do Goytacaz
- Lendas do Futebol Carioca: as risadas e os arrepios na página de Facebook que você já deveria conhecer
Por causa de tanta bagunça e da eterna guerra entre Campos dos Goytacazes e Niterói, houve muita resistência quando a Federação Carioca de Futebol resolveu convidar Americano, Goytacaz e Volta Redonda para jogar o Campeonato Carioca. Até mesmo João Saldanha, jornalista esportivo e ex-técnico de Botafogo e seleção brasileira foi contra a entrada dos clubes do estado do Rio de Janeiro no campeonato que outrora, era restrito ao estado da Guanabara.
E cabe ressaltar o caso do Canto do Rio, que por 11 anos (1941 à 1952), jogou simultaneamente os campeonatos Carioca e Fluminense, já que além do time profissional (que jogava pela Cidade do Rio), tinha um time amador (que jogava por Niterói). O Cantusca é até hoje, o único time do Brasil a jogar por dois estados ao mesmo tempo.
Preconceito da mídia e a capilaridade dos maiores clubes
No Brasil, é extremamente comum (sobretudo em estados com grandes territórios, como São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Pará, Goiás e Ceará) a mídia dar mais destaque aos clubes das respectivas capitais do que aos times do interior. Até porque as capitais são as maiores e mais populosas cidades destes estados – com exceção de Santa Catarina, cuja cidade mais populosa é Joinville.
Só que nestes estados citados, mesmo que os times estejam na Série D, a mídia local dá muito destaque. Isso não acontece no Rio de Janeiro.
Por ter sido capital do Brasil por quase 200 anos, o Rio sempre teve muito destaque, e os quatro grandes clubes cariocas arregimentaram grandes torcidas pelo Brasil ao longo dos anos, especialmente com o rádio. Mesmo em cidades com clubes bem representativos, como Volta Redonda, Nova Friburgo, Cabo Frio e Campos dos Goytacazes, os times locais não são tão fortes como se vê em cidades como Campinas (SP) ou Caxias do Sul (RS).
Isso acontece pelo fato de os times pequenos do estado do Rio serem tratados como uma espécie de “segundo time” de botafoguenses, flamenguistas, tricolores e vascaínos. Curiosamente, o Rio de Janeiro é a cidade com mais times profissionais do Brasil: 25. Muito deste número se deve à cultura dos clubes de bairro, que sofrem do mesmo mal dos times do interior do estado.
E isso tudo se reflete na mídia. Na década de 1980, existiram narradores especializados em cobrir times pequenos e de subúrbio. Em 1983, a Rede Globo já chegou a transmitir ao vivo um América x Bangu com narração de Galvão Bueno.
Porém, com o passar dos anos, a mídia acabou se direcionando com maior foco aos quatro grandes. Os times pequenos possuem apenas notinhas de rodapé nos grandes jornais cariocas. Neste caso, vale destacar, o cenário não é muito diferente do que se vê em outros estados.
Felizmente, a Internet é democrática, e graças à ela temos vários trabalhos dedicados a cobrir estes times de menor porte. Caso do extinto FutRio, da também extinta Rádio Super Torcida e dos sites Cariocado, Soccer Sports Rio (ex-FutShow), SEN (Sports Entreitanment Network) e Furando a Rede (que também produz vídeos), além das web rádios Jovem Carioca, Jovem Olaria (formada por gente ligada ao Olaria Atlético Clube) e Piabanha, de Petrópolis.
No entanto, todos estes trabalhos são praticamente amadores. Embora existam ótimos profissionais com registro que fazem este trabalho, a falta de patrocínio é um grande impeditivo. Foi por razões financeiras que a Rádio Super Torcida fechou as portas em 2021. E este preconceito da imprensa, aliado com o sentimento de “segundo time” acaba refletindo nos times de menor porte.
Clubes parados no tempo e dependentes de políticos
Ao contrário de estados como São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e até mesmo Goiás, os times menores do Rio de Janeiro praticamente pararam no tempo. Alguns clubes possuem gestões familiares e praticamente autocráticas, sendo o caso mais conhecido, o Bangu.
No Alvirrubro da Zona Oeste, o atual presidente é aliado ao presidente da FERJ, Rubens Lopes – que, enquanto foi mandatário do clube de Guilherme da Silveira, foi responsável pelo primeiro rebaixamento do clube, em pleno ano do centenário. Já tivemos caso de treinador escolhido por ser genro de Rubens Lopes.
Além disso, muitos clubes fluminenses cresceram galgados no apoio de prefeituras. São os casos de Duque de Caxias e Macaé, que chegaram à Série B com forte apoio de políticos. No Duque, o ex-prefeito da cidade, Washington Reis, é patrono do clube e o craque do time sempre vestiu a camisa 15, alusão ao MDB, partido de Reis.
Curiosamente, a prefeitura local só viria a estampar seu logotipo em 2013, época em que o alcaide caxiense era Alexandre Cardoso. Washington Reis voltou à prefeitura em 2016, mas nunca deu um centavo de dinheiro público ao Tricolor da Baixada. Em 2022, o time está na terceira divisão do Cariocão.
O Macaé também cresceu graças à prefeitura da cidade, que recebia muito dinheiro dos royalties do petróleo. Mas o ano da participação do Alvianil Praiano na Série B do Brasileirão (2015) coincidiu com o começo da crise financeira enfrentada pela cidade e pelo estado do Rio, que perdeu muitas receitas com o petróleo. Resultado: queda livre tanto em âmbito nacional quanto em âmbito estadual.
Sem contar que outros times já jogaram com o apoio escancarado das administrações municipais em suas camisas. Até mesmo o Vasco, um dos quatro grandes, já teve o logo da prefeitura do Rio de Janeiro estampado na manga da camisa no ano de 2003 (época em que o prefeito do Rio era César Maia).
Porém, a farra das prefeituras acabou em 2012, quando o Ministério Público do Estado do Rio proibiu esse patrocínio das administrações municipais em clubes de futebol. Na verdade, as prefeituras até apoiam os times de suas cidades, mas a farra que se viu nos anos 2000 nunca mais aconteceu.
Relação entre Ferj, TV e os grandes
Vale destacar o caso dos grandes, especificamente do Flamengo. A relação entre o time da Gávea e a FERJ já passou por alguns abalos – como em 2015, quando a volta de Eurico Miranda ao comando do Vasco fez com que a dupla Fla-Flu “rompesse” com a federação e entrasse na fracassada Primeira Liga. Depois disso, o casamento se mostrou bem firme.
E esta relação fez com que 14 dos 16 times que disputavam o Campeonato Carioca fossem a favor da volta do futebol em 2020, quando a pandemia ainda estava correndo à solta e nem tínhamos uma vacina. Só Fluminense e Botafogo foram contra.
E esta mesma relação Fla-FERJ fez com que os clubes aceitassem um contrato de televisão com a Record TV que é extremamente prejudicial a eles mesmos – tanto que o Campeonato Carioca no biênio 2021/2022 nem tem premiação. Aliás, a própria Record TV comprou os direitos do Cariocão nas coxas, sem que a filial carioca avisasse a matriz paulista e ainda cobrando taxa para as afiliadas transmitirem os jogos.
Sem contar os vários problemas de transmissão do Cariocão Play – como o caso da Claro, que simplesmente se esqueceu de programar um jogo do Vasco – e o preço elevadíssimo da assinatura, o que forçou muitos torcedores a recorrerem aos sites piratas e ao IPTV (porque R$ 130 em um estado ferrado economicamente e com a inflação comendo parte dos nossos salários não ajuda o torcedor).
Se os clubes aceitam o que está aí, não tem como discutir. E infelizmente, os clubes aceitam migalhas, em troca de votos na FERJ. Para se ter uma ideia, tem clube amador licenciado há mais de 30 anos que tem direito a voto na eleição para presidente da Federação do Rio. Assim fica fácil, né?
O romantismo dos clubes de bairro
Oficialmente, a cidade do Rio de Janeiro é a cidade brasileira com o maior número de clubes profissionais (25), contando os quatro grandes e o America – que apesar de ser da Tijuca, tem seu estádio no município de Mesquita, na Baixada Fluminense. A maior parte destes times é de clubes de bairro centenários e que pararam no tempo quando o futebol evoluiu.
Ao contrário dos times que levam nomes de cidades (Volta Redonda, Resende, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Macaé, Quissamã, Cardoso Moreira), os clubes de bairro não recebem um tostão de apoio da prefeitura da capital. Pior: alguns tiveram suas sedes demolidas, como o Everest, cujo estádio virou um condomínio de casas populares, e do próprio America, que perdeu o seu estádio no Andaraí para a construção do Shopping Iguatemi (atual Boulevard) e sua sede na Rua Campos Salles, que está se transformando em um shopping.
Os clubes de bairro possuem um papel social extremamente importante em suas comunidades, já que empregam idosos e deficientes físicos, mão de obra rejeitada pelo mercado formal de trabalho, além de todo o vínculo local que existe em torno destas agremiações. Porém, no futebol moderno, amor não paga salário e estes times quase sempre costumam passar vergonha nos torneios nacionais.
O último clube de bairro da cidade do Rio que teve calendário cheio foi o Madureira, que jogou a Série C moderna de 2011 à 2015. A esperança é a Portuguesa, que está na sua terceira Série D consecutiva.
Como resolver?
As possíveis soluções? São simples, e passam por alguma lei estadual de incentivo ao esporte e uma mudança profunda na mentalidade dos clubes (para se transformarem em clubes formadores, e não dependentes de cotas de TV) e na presidência da FERJ (para ela ser uma entidade que preze o bem de todos os clubes, ao invés de apenas quatro).
Só que isso infelizmente é apenas uma utopia.
O tempo está correndo. E acabando. E quando a gente menos perceber, os times pequenos irão acabar por eles mesmos.
Comentários