Futebol e política sempre andaram em uma linha muito tênue ao longos dos anos — e não digo somente os cartolas dos clubes, mas sim, os políticos públicos de uma forma geral. Isso era mais evidente nos tempos dos ditadores nos principais países do esporte bretão. Quem não se lembra da icônica troca no comando da seleção brasileira de 1970, por parte do então presidente Médici, que colocou Zagallo no lugar do técnico João Saldanha? Ou então a ligação do fascista Benito Mussolini com a equipe da Lazio, apesar do ditador ser declaradamente torcedor do Bologna?
Agora, imagine o seguinte cenário: um dos ditadores mais influentes do mundo (senão o mais influente) está calmamente vendo a seleção do país que ele governa jogar um amistoso contra a seleção de outro país recém-anexado ao dele. Porém é aí que entra a história do nosso personagem de hoje: Matthias Sindelar.
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Sindelar nasceu em 1903 em uma região da atual Tchéquia, mas que na época ainda pertencia ao Império Austro-Húngaro e que viria a se dissolver em 1918 com o final da Primeira Guerra Mundial. Contudo, juntamente de sua família, se mudou para Viena, capital da Áustria, em 1905.
Ingressou nas categorias de base do Hertha Viena após uma atuação em que marcou 5 gols — naquela época, os jovens austríacos podiam jogar no campo da equipe duas vezes por semana através das escolas locais. Não demorou muito para o jovem franzino chegar a equipe profissional, fato esse que ocorreu em 1921.
Jogou pela equipe até 1924, quando mesmo com sérios problemas físicos depois de uma séria lesão que teve um ano antes, foi parar no Áustria Vienna, time que jogou até o fim de sua carreira em 1938.
Apesar de ter se destacado e muito pelo clube, o reconhecimento mesmo veio por suas atuações com a camisa da seleção austríaca, na qual estreou em 1926. Nessa época ele já possuía uma alcunha bem sugestiva por parte da imprensa local: “O Homem de Papel”, apelido decorrente de seu porte físico e também da forma como conduzia a bola pelos campos.
Matthias Sindelar e a seleção austríaca participavam então pela primeira vez de uma Copa do Mundo em 1934, na Itália. Coube a ele marcar o primeiro gol da seleção na partida de estreia contra a França. O sonho austríaco parou nas semifinais diante os donos da casa, que viriam a se sagrar campeões. Na decisão do terceiro lugar, o primeiro embate frente a seleção germânica que marcaria a vida de Sindelar, melhor para os alemães que venceram por 3 a 2.
A eliminação foi um duro golpe para Sindelar e outros jogadores austríacos que na época eram chamados de Wunderteam, ou “Time dos Sonhos”. Tentaram uma reformulação no selecionado nacional, sem muito sucesso. O Mozart do futebol, como era referenciado algumas vezes, não participou da Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1938 na França; mesmo assim, a seleção austríaca se classificou para o Mundial. Contudo, pouco tempo depois da classificação veio a notícia: a Áustria seria anexada pela Alemanha Nazista.
Lembra-se quando no início incitamos a sua curiosidade para um possível cenário de uma partida? Pois bem: uma semana antes do plebiscito que selaria a união dos dois países, os alemães programaram uma partida ante os austríacos em Viena. Apesar de serem referidos pelos nazistas como a seleção austro-alemã, os jogadores entraram em campo com uniforme e bandeira da Áustria. Além disso, diz-se que, antes da partida, ficou combinado que o amistoso terminaria empatado sem gols para não prejudicar ou beneficiar qualquer seleção que fosse. Inclusive, durante o primeiro tempo, pareceu nítido que a equipe austríaca perdia de propósito várias chances de gols.
Após um comício politico por parte dos alemães no intervalo, as coisas pareceram mudar. É aí que entra mais uma vez nosso personagem, o Homem de Papel. Sindelar abriu o placar e, segundo relatos de populares a época, foi comemorar o tento austríaco efusivamente na frente do camarote aonde se encontrava ninguém menos que Adolf Hitler — fato negado por algumas fontes, enquanto outros relatos afirmam que ele nem mesmo estava na partida. No final, a seleção austríaca ainda viria a marcar mais um, fechando a conta em 2 a 0 contra a Alemanha Nazista.
Esse jogo também ficaria marcado por ser o último de Sindelar pela seleção austríaca. Com a anexação efetivada, o técnico alemão, mesmo que contrariado, se viu na obrigação de levar jogadores do país recém-anexado. Mesmo que um desses jogadores chamados fosse Sindelar, o mesmo se recusou a jogar, e ele logo viu sua carreira ruir de vez quando os nazistas encerraram o profissionalismo no futebol austríaco.
Após deixar o futebol, o agora ex-jogador começou a estreitar relações com os nazistas de outro modo, virando diretor da empresa que controlava os estádios da cidade de Viena. Esse fato ocorreu um dia antes de morrer de forna trágica e precoce. No dia 23 de janeiro de 1939, o maior jogador da história do futebol austríaco viria a falecer junto da sua então namorada Camilla Castagnola no apartamento onde vivia.
A autópsia oficial confirmou a morte como por inalação de monóxido de carbono, fato comum a época — porém, como você deve imaginar, não faltaram suspeitas de que se tratara de estar diretamente ligado ao regime nazista. Um suposto suicídio por causa da pressão exercida pelos alemães ou mesmo assassinato por suspeitas de que ele fosse ”pró-judeu” e “social-democrata”, o fato de ter recusado jogar pela seleção alemã ou até mesmo o gol que ele marcou e comemorou efusivamente em uma amistoso que “deveria” ter acabado empatado.
Fato é que uma multidão acompanhou seu funeral, dando o último adeus para aquele jogador que deu tantas alegrias ao povo, aquele que mesmo franzino flutuava em campo, aquele que mesmo contra a vontade de alguns jogou para vencer, para chegar ao momento máximo do futebol e comemorá-lo como se não houvesse amanhã.
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