“Alguns países se especializam em ganhar e outros em perder”. A frase de efeito surge logo na primeira página do clássico As Veias Abertas da América Latina, mais famosa obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Fanático por futebol, o autor via no esporte um símbolo de resistência – não faltaram episódios em que a bola trouxe a redenção para povos oprimidos.
Gols têm o singular poder de inverter essa lógica: nações acostumadas a derrotas são capazes de triunfar. Falecido em 2015, Galeano se notabilizou por contar essas histórias (seja em livros, como Futebol ao Sol e à Sombra, ou em entrevistas). Uma de suas passagens preferidas é pouco conhecida, embora seja espetacular. Soube que um dia, nas palavras do próprio, a seleção peruana humilhou Hitler? O caso é bastante controverso, mas vale ser contado.
Antes de descrever o que aconteceu, cabe uma nota: o relato será aqui apresentado sob a ótica peruana. No fim do texto, falaremos um pouco sobre as contradições da narrativa (o quanto, afinal, há de lenda nisso tudo?)
Peru x Hitler
A história da seleção peruana nas Olimpíadas de 1936 é uma espécie de versão futebolística da famosa vitória de Jesse Owens – atleta americano, negro, que venceu quatro medalhas de ouro naqueles Jogos e calou o Estádio Olímpico de Berlim. As conquistas geraram grande constrangimento ao regime nazista, que utilizava o esporte como propaganda da teoria sobre a “superioridade” da raça ariana.
A mesma lógica valia para o torneio de futebol. Após a surpreendente eliminação da Alemanha pela Noruega, nas quartas de final, virou questão de honra que a Áustria – anexada pelos alemães dois anos depois – avançasse na competição. A seleção teria pela frente o Peru, time apelidado de”Rodillo Negro“, formado por muitos atletas afrodescendentes e que já havia contrariado os princípios eugenistas ao golear a Finlândia por 7 a 3 na primeira fase.
Para satisfação de Hitler, supostamente presente no estádio, os austríacos abriram 2 a 0 e mantiveram sua vantagem até os 15 minutos finais. A equipe sul-americana, porém, não se entregou e conseguiu empatar com gols de Jorge Alcalde e Alejandro Villanueva (atacante que dá nome ao estádio do Alianza Lima), levando a partida para a prorrogação.
Os peruanos tiveram três gols anulados na reta final do confronto, mas, ainda assim, marcaram outros dois e venceram por 4 a 2, avançando para as semifinais. Curiosamente, o duelo foi encerrado a um minuto do fim do tempo extra, quando teria acontecido uma invasão de campo que forçou o abandono da equipe europeia. Os incidentes daquela data, porém, são um tanto nebulosos.
Dirigentes austríacos pediram a anulação da partida, relatando que torcedores do time adversário haviam entrado no gramado armados, um deles até com um revólver. A versão é sustentada por reportagem do jornal inglês Daily Sketch, que cobriu o evento e mencionou uma extraordinária massa de “cerca de mil peruanos, munidos de barras de ferro, facas e até uma pistola”.
Supostamente a mando de Hitler (suspeita nunca oficialmente confirmada), o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA ordenaram que o jogo fosse remarcado. A equipe vencedora alegou uma grande conspiração nazista e se recusou a enfrentar a Áustria novamente, o que ocasionou sua eliminação.
No Peru é bastante difundida a versão de que a invasão é superestimada e não foi a verdadeira razão do fim precoce do jogo. Deixando a história ainda mais confusa, peruanos afirmam que o árbitro encerrou a partida mais cedo por um motivo bizarro: teria percebido que o campo não tinha as medidas exatas.
Fato é que a delegação peruana não aceitou a anulação de sua vitória e se retirou inteiramente dos Jogos – acompanhada dos atletas colombianos, que também aderiram ao boicote. Os Comitês Olímpicos de Argentina, Chile, Uruguai e México não foram tão radicais, mas expressaram, em nota, solidariedade ao Peru.
O incidente diplomático foi além do esporte, com protestos em Lima (nos quais a bandeira olímpica foi queimada e houve apedrejamento da embaixada alemã), além do fechamento temporário do porto de El Callao, o principal do país, a navios alemães. O próprio presidente peruano, Oscar Benavides Larrea, chegou a lamentar a anulação do jogo em um pronunciamento.
Os austríacos ficaram com a medalha de prata naqueles Jogos, perdendo a decisão para a Itália – já governada sob regime fascista e aliada dos alemães. A geração peruana que foi impedida de prosseguir nas Olimpíadas teve sua consagração em 1939, quando venceu o Campeonato Sul-Americano de Futebol (sem a participação de Brasil e Argentina).
Controvérsias
É fato que o regime nazista preferia a vitória austríaca, assim como soa suspeita a anulação da partida após o triunfo peruano. Posto isso, é preciso apresentar também a contestação sobre alguns trechos que tornam a história mais épica.
Primeiramente, no Peru é comum que se refira àquela seleção austríaca como sendo o Wunderteam, time que marcou época na Europa com goleadas nos anos 30. Apesar de contemporânea, a Áustria dos Jogos Olímpicos não tinha as estrelas da equipe principal, como Mathias Sindelar e Josef Smistik.
Mais do que isso, é incerto se Hitler realmente estava no estádio e se teria pressionado a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional a anular o jogo. Nenhum documento prova isso e a versão teria surgido por volta dos anos 40, quando já eram amplamente conhecidas as atrocidades do nazismo. É possível que a inclusão do Führer no enredo seja uma forma oportunista de aumentar o feito peruano, equiparando-o ao de Jesse Owens (episódio no qual, comprovadamente, Hitler estava presente na disputa de uma das medalhas e se recusou a cumprimentar o americano).
E, por fim, há pesquisadores que corroboram com a gravidade da invasão de campo. Um deles, o peruano Luis Carlos Arias Schreiber, conta no livro “Esse Gol Existe” que muita ficção foi criada para vitimizar os atletas e torcedores do Peru.
Embora reconheça que deva existir exagero em relatos europeus (como o jornal inglês que afirmou serem cerca de mil peruanos invadindo o gramado), Schreiber defende que o tumulto aconteceu sem qualquer influência nazista, por culpa exclusiva dos torcedores visitantes. Jogadores austríacos teriam sido agredidos e isso, então, justificaria a remarcação. Ele afirma, ainda, não haver nenhum embasamento na versão de que o juiz encerrou o duelo por problemas com as medidas do campo.
Em quem acreditar, Schreiber ou Eduardo Galeano? Ainda que peruanos realmente tenham invadido o campo armados e agredido adversários, seria justa a remarcação do jogo? Não haveria outra forma de punição? Dificilmente surgirá uma resposta conclusiva algum dia, mas nem por isso há de se discordar que essa história – de 80 anos atrás – é incrível e merece ser relembrada.
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