Ainda que envolva uma competição, praticamos futebol na rua sem a presença de uma autoridade que decida quem foi cada vencedor e aponte quando algo acontece fora das regras. Isso é possível porque determinadas situações são tão nítidas aos olhos dos conhecedores do assunto que fica banal certas discussões, como se foi falta ou não, ou se a bola entrou. Ao menos um dos jogadores estará próximo ao lance e será testemunha do fato.
É válido discutir se este jogador dirá a verdade perante uma questão que o envolve e o possa prejudicar. Em caso negativo, porém, é evidente sua falta de amor pelo jogo, mas sim pela vitória em si. Se jogamos algo, gostamos do jogo, e isso não deveria servir como um instrumento de alimentação do próprio ego em uma busca infantil de se sentir melhor que outro porque ganhou. Quem não gosta do jogo não é jogador. Perder faz parte.
Por isso, quem sabe o que o jogo significa não mente. Mesmo se a partida “valer” algo (como sempre vale, nem que seja a própria honra), ganhar pelos próprios méritos é a única forma de dizer que se ganhou verdadeiramente. Vencer de qualquer forma não é uma vitória no campo de jogo. Pode ser qualquer outro tipo de vitória, mas não do jogo específico.
Supondo que exista então uma ética para respeitar as 17 regras do futebol, por que precisaríamos de uma presença autoritária, que, por ser humana, também pode errar e prejudicar a partida? Pra que uma interpretação da regra se ela é clara e todos os participantes a conhecem?
Qualquer um que seja detentor do poder de decidir como será a interpretação da lista de regras será pressionado por todos os envolvidos. E é evidente que os dois lados não se sentirão na obrigação de ter qualquer compromisso com a verdade com relação às situações, afinal, existe uma pessoa ali só pra isso, especializada em julgar o veredito final mais correto para o caso. Acaba, então, sendo lógico que cada um abrace a missão de fazer a própria advocacia, independente de como o fato realmente aconteceu, e que o poder argumentativo seja mais relevante que a necessidade de cumprimento da regra em si.
A presença de uma autoridade responsável pela interpretação das regras muda o jogo como ele foi escrito. Ganhar então acaba não pertencendo mais a quem melhor cumpre o acordado, mas quem o dono das leis determina como vencedor. Ou seja, uma autoridade extrai a necessidade das pessoas refletirem sobre os próprios atos, tornando-os cúmplices dos erros que cometeram, enquanto sem ela o vencedor é apresentado por meio de um consenso, cabendo ao pior time esperar sem reclamações para tentar ser melhor e ganhar do seu adversário.
Quanto mais as interpretações acerca dos regulamentos forem responsáveis pelos nossos atos, mais advogados dos nossos erros seremos. Se pode ser dispensável a figura de um juiz para interpretar as 17 regras do jogo que queremos fazer parte, não pode ser tão impossível viver sem uma infinidade de agentes que assumem papeis de controle da sociedade por serem os melhores conhecedores de todos os artigos – especificamente 114 na Constituição Brasileira de 1988 – nos coagindo a viver do jeito determinado como certo.
Uma autoridade não elimina a possibilidade de agressões ou simulações, nem no campo e nem fora dele, apenas aumenta a necessidade dos indivíduos esconderem as próprias ações incorretas e aumentarem seu poder de argumentação na medida em que é impossível confiar 100% em qualquer terceiro responsável por um julgamento. Se existe uma busca pelo jogo mais limpo, sejamos então educados para conhecermos melhor as leis que regem as situações e que menos fiscais façam o papel de donos dos acordos de interpretação das leis entre as partes.
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