Os tempos são peculiares no futebol brasileiro. Com o título do Cruzeiro no Campeonato Brasileiro e a conquista do Atlético-MG na Copa Libertadores da América, é natural que a rivalidade em Minas Gerais esteja acirrada – como se já não fosse. Neste cenário, os dois lados trocam provocações, para ver quem é melhor, quem é maior, quem vem brilhando mais.
Dia desses, me mandaram a seguinte capa de jornal:
A rigor, o torcedor (do Atlético-MG, imagina-se) expõe a péssima campanha do Cruzeiro no Campeonato Brasileiro de 1994. Com a segunda pior pontuação da competição (16 pontos), a equipe mineira em tese ocuparia uma das duas vagas na zona de rebaixamento, atrás do Remo (17) e à frente do Náutico (15). E só não caiu porque uma manobra da CBF salvou a equipe.
Para desmentir essa página, vamos mostrar a explicação séria e a explicação óbvia.
A explicação séria
Não houve manobra jurídica nenhuma.
Naquele ano, o Campeonato Brasileiro tinha 24 times divididos em quatro grupos (com seis times cada) na primeira fase. Nesta fase, cada chave classificava os quatro melhores para a segunda fase (somando 16 times); os dois piores de cada fase iam para a repescagem (somando 8 times), da qual se definiram os rebaixados.
É bem verdade que a campanha do Cruzeiro foi medonha no torneio. Na primeira fase, o time celeste foi o lanterna do Grupo C, somando 4 pontos, atrás de Guarani (15 pontos), Santos (14), Vasco da Gama (11), Bahia (11) e do próprio Remo (5). Assim, cruzeirenses e remistas foram para a repescagem contra o rebaixamento, ao lado de Criciúma, Bragantino, Atlético-MG, Vitória, União São João e Náutico. Os dois últimos colocados caíam para a Série B, independente da pontuação na primeira fase.
(Vale destacar: os dois primeiros colocados da repescagem iam para as quartas de final do campeonato. Que regulamento bizarro, não?)
Na repescagem, todos os times se enfrentavam em turno e returno (14 jogos), e o Cruzeiro passou sufoco mesmo. Derrotado pelo Vitória na última rodada por 2 a 0, o time foi o sexto colocado dentre os oito clubes, somando 12 pontos – mesma pontuação do Remo, que foi sétimo por levar a pior no saldo de gols (-6, contra -4 do Cruzeiro). Assim, o time paraense foi para a Série B de 1995, assim como o Náutico, lanterna da repescagem com 9 pontos.
Na hora de definir a classificação final, somam-se os pontos de todas as participações dos times. Assim, embora o Cruzeiro tenha somado menos pontos que o Remo (16, contra 17), o time mineiro aparece acima na tabela (22º, contra 23º). Foi por pouco, no saldo de gols, mas o Cruzeiro se salvou de jogar a Série B de 1995.
A explicação óbvia
Cá entre nós, eu duvido que O Globo tivesse acesso a um print screen da Wikipedia para colocar em sua capa – em 1994 ou em 2013.
Sim: quem fez a montagem se baseou na classificação que a Wikipedia traz em sua página sobre o Campeonato Brasileiro de 1994. A classificação final é correta, mas há que se considerar todos os critérios já explicados anteriormente aqui. Para efeito de comparação, o torcedor pode comparar com a tabela da RSSSF, organização especializada em estatísticas de futebol.
Outro fato relevante: por se tratar de um jornal impresso no Rio de Janeiro, é difícil acreditar que o rebaixamento de um time de Minas Gerais o Campeonato Brasileiro ocuparia o lugar de principal destaque da capa do jornal – ainda mais com o título brasileiro do Palmeiras em segundo plano, e o início do julgamento de Fernando Collor e PC Farias (cuja data este blog não conseguiu encontrar para confrontar) fazendo figuração na capa.
E mais: o texto abaixo da manchete apresenta diversos erros de digitação. Os dois times aparecem com seus nomes escritos com letras minúsculas (“cruzeiro” e “remo”), e o jornal se refere ao caso apresentado como “o mairo escândalo”, e não “maior”. Difícil acreditar que um jornal respeitado como O Globo deixaria esse tipo de erro passar. Se não conseguir ler, clique aqui para ver a imagem aumentada.
Cansou? Pois tem mais! A montagem se refere aos torcedores do Remo como “remenses”, e não remistas. E, de quebra, a goleada por 5 a 0 mencionada não existiu – o Cruzeiro deu vexame mesmo diante do Remo na repescagem e foi goleado em Belo Horizonte, mas por 5 a 1, com gol de Mário Tilico para os donos da casa e quatro gols de Heleno para os visitantes.
Não acabou: o último jogo do Cruzeiro no Campeonato Brasileiro de 1994 foi em 14 de novembro, mais de um mês antes da data da capa em questão. Você pode argumentar que a bomba explodiu no dia 18 de dezembro, data do segundo jogo das finais do Campeonato Brasileiro, e que por isso foi divulgado no jornal do dia seguinte. Tudo bem, mas você não pode discutir com a capa do jornal O Globo de 19 de dezembro de 1994, facilmente encontrável no acervo online do próprio jornal.
Enfim, são MUITAS as incongruências da montagem, e qualquer leitor com o olhar um pouco atento pode perceber o absurdo da montagem. Pode ser que seja uma piada (e eu não entendi a ironia, sei lá), ou pode ser que haja extrema má-fé de algum torcedor, como o que criou o ingresso do jogo do São Paulo na “segunda divisão” do Campeonato Paulista de 1991. Seja o que for, é preciso atenção: se você quer fazer piada com o seu rival ou exaltar seu time, que o faça com argumentos válidos, e não com qualquer coisa sem apuração que aparece no seu Twitter. Seja esperto, torcedor!
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