Luvannor Henrique começou a trabalhar aos 15 anos e ainda assim se destacou no futebol de várzea. Fez testes em vários clubes, sem sucesso. No entanto, se superou e deu a volta por cima – foi tri campeão e artilheiro na Moldávia. Hoje é um dos grandes nomes da Liga dos Emirados Árabes.
Entrevistamos o atacante de 30 anos que atualmente joga pelo Shabab Al-Ahli Dubai, dos Emirados Árabes. O jogador nasceu no Piauí, mas cresceu em Brasília, onde deu seus primeiros passos no futebol.
Leia também:
- Soviéticos nos EUA logo após o fim da Guerra Fria: os intensos 6 meses da seleção da CEI
- A história dos times de Minas Gerais e Goiás no Campeonato Brasiliense
No Distrito Federal, ele enfrentou inúmeras dificuldades que quase fizeram ele desistir de tentar realizar o sonho de se profissionalizar. Começou a trabalhar aos 15 anos de idade, enquanto atuava na várzea. Foi recusado em diversas avaliações na base, teve uma lesão séria e não tinha dinheiro para o tratamento.
No entanto, superou tudo isso. Da capital federal, rumou para o Leste Europeu, onde obteve destaque. Foi tricampeão, artilheiro, jogou a Liga Europa e vestiu a camisa da seleção da Moldávia. Depois disso tudo, teve a oportunidade de se transferir para o Oriente Médio, em meio a atletas conhecidos internacionalmente.
O começo de tudo
Luvannor nasceu em Campo Maior (PI) em 1990. Com apenas um ano de vida, já deixou sua cidade natal: sua avó conseguiu um emprego em Brasília, e decidiu se mudar para a capital junto com os pais do atacante.
Naquela época, o sonho de ser jogador começou a despertar no garoto. Ele já dava seus primeiros chutes certeiros na bola. Segundo Luva, como é chamado, essa ligação vem de berço.
“A relação com o futebol é do sangue. Meu pai jogou, meus irmãos são profissionais também. Com cinco anos, eu já disputava campeonatos e coloquei na cabeça que eu ia vencer”, diz.
Alguns anos depois, a realidade bateu na porta. Começaram a surgir as primeiras barreiras. Além de fazer o que mais gostava, que era jogar, teve que começar a contribuir financeiramente com a família. Começou a trabalhar como cobrador de vans. Arrumou outros empregos e passou a vestir a camisa do time da cidade onde morava.
“Passei pelo infantil, juvenil e juniores do Paranoá. Quando fiz 18 anos, ultrapassei o limite de idade para atuar na base. Como não tive oportunidade no profissional, decidi trabalhar e continuar disputando campeonatos amadores aos domingos. Arrumei um emprego de jardineiro, depois consegui emprego de carteira assinada, em uma obra.”
Prioridade ao futebol
Depois que oito meses se passaram, ele pensou que era a hora de começar, de verdade, a ir atrás do que sempre sonhou. Luvannor abandonou o posto de pedreiro e decidiu arriscar tudo na bola. Nos seis meses seguintes, conseguiu se manter graças ao seguro desemprego. Assim, deu uma atenção maior aos campeonatos de várzea e se destacou.
Começou a ser mais conhecido na cidade, e recebeu um convite para se profissionalizar no time principal do Paranoá. Ele se destacou na segunda divisão do Candangão, jogando como lateral esquerdo — e não meia, como era acostumado. Em seguida, apareceu um personagem importante para sua carreira: Gustavo Roriz, conhecido como Guty, preparador físico que tem muitos contatos no ramo do futebol.
“Me indicaram o Guty e comecei a trabalhar com ele. Como não estava mais empregado, a rotina era treinar, treinar e treinar. Se preparar e focar, para agarrar a oportunidade quando ela aparecesse. Fazia alguns testes em clubes, alguns gostavam, mas nada se concretizava”, diz Luvannor.
Conversamos também com Guty, um dos principais responsáveis pelo sucesso do jogador. Ele contou o quanto Luvannor era realmente muito dedicado naquela época:
“Sempre foi um cara muito bacana e divertido, além de extremamente determinado. Quando eu passava algo que ele não conseguia fazer, no dia seguinte ele já apresentava uma evolução e fazia questão de mostrar. O mais impressionante era que ele morava numa casa muito simples e treinava lá mesmo. Eu me perguntava como, em um espaço de uns quatro metros no máximo. Os treinos acabavam tarde, não tinha como ir para a rua. Quando eu apontava um detalhe para ele melhorar, ele melhorava! Antes de ir para a Moldávia, eu falei para ele estudar russo, que ia ajudar, ele foi e estudou. Hoje em dia fala inglês, russo, espanhol, além de entender o árabe”.
A primeira pedra no caminho
Em 2009, Luvannor teve uma séria lesão no púbis. Isso o deixou meses sem poder atuar, e passou esse tempo fazendo o tratamento com o fisioterapeuta Henrique Chaves. Neste momento, apareceu mais um elemento que seria fundamental para que sua carreira não fosse por água abaixo.
“Pensei em desistir, até que surgiu uma pessoa que me ajudou bastante: o Carioca. Um conhecido do meio do futebol amador. Através de amigos em comum, e se encontrando nos finais de semana, nos aproximamos. Ele chamava jovens para trabalhar com ele, lavando e vigiando carros. E ainda emprestava o próprio carro para que eu fosse até a fisioterapia. Foram meses nesta rotina intensa.”
Conseguimos conversar com o Evandro Carioca, para saber o que ele lembra daquela época e entender melhor a relação entre os dois. “Nossa relação era boa, como de pai para filho. O que eu pude fazer para ajudá-lo, eu fiz. Sempre que precisava, eu o auxiliava com chuteiras, essas coisas. Quando trabalhou comigo, foi o melhor. Dava o máximo, era determinado. Lavava e vigiava carros no edifício Rádio Center, aqui em Brasília.”
“No futebol amador, ele surgiu jogando no time do pai dele e de amigos meus. Eu tenho um time chamado Agachadinho, desde 2005. Os que se destacam no campeonato, eu convido para o meu. O chamei porque estava arrebentando, era um dos melhores. Eu sabia que ele iria vingar. Tinha muita vontade, ajudava a família e era dedicado, um dos melhores da cidade na época. Deus o iluminou e realizou o sonho dele graças a vontade e a garra, sempre foi guerreiro. Eu queria que ele fosse longe, e ele foi”.
Tentativas frustradas
Depois de se recuperar da lesão, Luva fez vários testes, mas teve que lidar com a decepção de não conseguir assinar contrato com nenhum time. O primeiro foi o Morrinhos, em Goiás. Depois de ficar dois meses treinando no clube, não foi contratado. Em seguida, chegou mais uma oportunidade, desta vez no Recife. Ele viajou para Pernambuco com o pensamento que teria que sobressair no teste, senão voltaria no voo seguinte. Chegou a conversar com os dirigentes, mas a proposta concreta não apareceu.
Por último, tentou a sorte em uma equipe da terceira divisão carioca e, mais uma vez, não teve um final feliz. Isso o deixou bem abatido e ele novamente cogitou colocar um ponto final no sonho de criança.
“Comecei a chorar. Pensei que futebol não era para mim. Liguei para o Guty e para o Ivan (empresário), agradeci, pedi para me indicar algum outro emprego. Falei que já tinha dado muito trabalho para eles. Pensei em retornar à minha vida anterior. Quando cheguei em casa, me ligaram para eu treinar, mas recusei”.
De acordo com Guty, era questão de tempo para chegar uma oportunidade de verdade para o jogador. Ele deu seu ponto de vista sobre o porque a coisa ainda não tinha tido um final feliz: “Ele arrebentava nos testes, mas alguns clubes não sentiam segurança. Ficavam na dúvida por ser um jogador de Brasília, sem currículo. A gente treinava nas segundas-feiras contra o Brasiliense, mas é um time que só contrata medalhão e eu não tinha muita relação com eles. O Luvannor amassava os caras. Ninguém se criava para cima dele, era muito talentoso, dava para ver.”
“Só não tinha oportunidades. Eu o falava que ia dar certo. De futebol, eu entendo. Ele já era melhor que os outros, uma hora alguém ia dar uma oportunidade. E quando ela chegasse, ele iria arrebentar. Foi o que aconteceu”.
A hora da verdade
Uma semana depois, a trajetória do ex-atacante do Agachadinho começaria realmente a mudar de rumo. Um empresário polonês queria observar alguns atletas brasileiros, e isso fez com que aparecesse um amistoso contra o Gama (DF). Seria mais uma chance para Luva.
Ele se convenceu e foi tentar mais uma vez. “Fiz minha parte. Sentia que só faltava o último passo. O cara se interessou por mim, e falou da possibilidade de um clube na Moldávia. Ele me contou que precisavam de um lateral. Eu respondi que iria em qualquer posição, era só me mandar. Com a data marcada, intensifiquei minha preparação com o Guty. Treinei tanto que cheguei lá tão bem fisicamente como eu nunca havia me sentido antes — acho que até melhor que hoje em dia.”
Falei para meu empresário que podia rasgar a passagem de volta, que eu iria determinado a vencer. Eu vi uma grande oportunidade de vingar fora do Brasil. Assim que cheguei lá, fiz um amistoso. Quando terminou, eu não conseguia nem respirar, de tanto que corri. Sozinho, deitei no chão do quarto do hotel, comecei a chorar, e entreguei nas mãos de Deus. No dia seguinte, me chamaram para assinar, aí foi só alegria, né?!”.
Ao ataque
Em sua chegada ao Sheriff Tiraspol, o brasileiro teve primeiro que se adaptar ao futebol europeu. De acordo com ele, o técnico da equipe o pedia para se preocupar mais com a marcação, e menos com a parte ofensiva. Até que o próprio capitão, se mostrou favorável a uma mudança de posição do novo contratado.
“No começo, jogando de lateral, a coisa não andou muito bem. Fiquei com medo de me mandarem embora, mas eles queriam que eu me adaptasse ao estilo deles. O capitão do time, que tinha muita moral, me perguntou se eu jogaria de ponta. Respondi: claro que sim. No próximo amistoso, o treinador me colocou. Joguei uns 40 minutos. Nos meus primeiros dez, das quatro chances que tive, foram duas assistências, uma bola na trave e um gol. Em pouco tempo, fiz mais que os outros”.
Após a pré-temporada, havia um jogo pelos playoffs da Uefa Champions League na Bósnia-Herzegovina. Um dia que, apesar da derrota por 1 a 0, ele nunca mais esquecerá em sua vida.
“Foi contra o clube da capital, Sarajevo. Era meu primeiro jogo de verdade. Foi uma dificuldade já na saída do hotel. A torcida adversária ficou batendo no ônibus, virou aquela bagunça, entraram em conflito com a polícia. Eu nunca tinha vivido isso, tudo era novo para mim. Tinham 25 mil pessoas no estádio. Quando entrei para reconhecer o campo, fomos tão vaiados, que eu não escutava nem o meu companheiro, a dois metros de distância. Fiquei tremendo de nervoso, com o coração saindo pela boca. E eu ainda estava meio perdido pela questão do idioma. Mas, tinha um brasileiro no time que me ajudou”.
Foram três anos no clube e uma passagem muito marcante: tricampeão (2012-2013-2014) e, no terceiro ano, artilheiro do campeonato com 26 gols. Em 2013 enfrentou o poderoso Tottenham em partida pela Liga Europa. Ele também recebeu um convite para defender a seleção do país, onde atuou por quatro jogos, um deles contra a Suécia, quando marcou um gol.
Casa nova
Sua passagem de destaque pelo Sheriff chamou a atenção de várias equipes, e ele aceitou ser transferido para o Shabab Al-Ahli Dubai, dos Emirados Árabes. O novo clube de Luva faz parte de uma liga bem mais conhecida mundialmente, com jogadores famosos. Ele chegou a ser companheiro do atacante Jô, ídolo do Atlético-MG e do Corinthians. Nos times adversários, haviam atletas como Grafite, Thiago Neves, Éverton Ribeiro e Asamoah Gyan.
No início, como sempre, não foi fácil. O menino criado em Brasília contou que sentiu um certo preconceito contra ele por vir de uma liga mais modesta e de um país desconhecido. Mas ele sentiu a confiança do diretor de seu clube, que apostou nele.
Estreia com dois clássicos
Se o primeiro jogo pelo Sheriff foi inesquecível, no Al Shabab não foi diferente. Nas primeiras partidas ele enfrentou as duas outras equipes da cidade.
“Fiquei na história do clube. Minha estreia foi contra o rival, o Al Ahli, na primeira rodada. Eles eram os atuais campeões. Saímos perdendo por 2 a 0 e eu pensei que levaríamos um atropelo. Conseguimos empatar com um gol meu. Em seguida viramos para 3 a 2, e eu fiz o gol do 4 a 2. O futebol é decidido em campo.”
“A partir daí, todo mundo me conheceu. Saí na televisão, cheguei com tudo. Naquela semana, eu me senti nas nuvens. Depois teve outro clássico contra o outro time de Dubai e eu fiz mais um gol. Ou seja, foram três nos dois primeiros jogos”.
O treinador na época era o brasileiro Caio Júnior, vítima do acidente aéreo da Chapecoense no final de 2016. O nordestino contou que eles se deram muito bem, e lamentou o falecimento do seu ex-comandante.
“Fico até arrepiado em falar. No intervalo do meu jogo de estreia, ainda perdendo de 1 a 0, o Caio falou ‘meu filho, acredite. Você vai fazer dois gols e vai ser um dos mais importantes’. Eu agradeci, e disse que iria tentar. Quando fiz o gol de cabeça, fui abraçá-lo. Tivemos uma relação de pai para filho. Ele foi uma pessoa de grande coração, muito querido. Não conheço ninguém que já falou mal dele. Tinha um enorme caráter. Foi um bom pai e um bom marido. Tive a oportunidade de conhecer a família dele”.
Hoje em dia, Luvannor continua atuando pelo time de Dubai, e mantém uma boa média de pelo menos 20 gols por temporada. Esta regularidade, segundo ele, garante sua permanência no clube até hoje. Além disso, formou uma família. Casou-se, ainda na Moldávia, e tem dois filhos.
Comentários