Quando Charles Miller voltou a São Paulo com uma bola de couro e um livro de regras debaixo do braço, quase ao mesmo tempo um escocês de nome Thomas Donohoe chegava ao Rio e meses depois armaria uma pelada com seus colegas britânicos da Fábrica Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro.
Como a partida em questão teria acontecido em setembro de 1884 (ou seja, sete meses antes de Miller organizar a histórica partida na Várzea do Carmo, em São Paulo), muitos conferem ao escocês o título de pai do futebol brasileiro.
Essa é uma tese polêmica, abraçada sobretudo por torcedores do Bangu Atlético Clube e rechaçada pela maioria dos historiadores. Mas se Seu Danau (como Thomas fora apelidado) pode não ser o introdutor do futebol no Brasil, o fato é que ele é um dos responsáveis por ter tirado o esporte dos clubes de elite, das quais frequentaram outros pioneiros como Miller e Oscar Alfredo Cox, e colocado a bola para correr na rua junto ao povo.
O livro Os Proletários da Bola: The Bangu Athletic Club e as lutas de classes no futebol da Primeira República (1894-1933), do historiador Gustavo Santos, trata exatamente sobre essa origem trabalhadora que moldou a identidade do clube carioca desde sua origem e também o papel que o futebol teve no Brasil naquele começo de século 20.
Gustavo, que é morador de Campo Grande, na zona oeste do Rio, e, claro, torcedor do Bangu, começou a tocar o livro durante a graduação, como um Trabalho de Conclusão de Curso. A inspiração, como era de se esperar, veio de suas lembranças no estádio Proletário, onde não chegou a tempo de testemunhar as glórias do Alvirrubro – cujo último grande feito foi ser vice (roubado, ressalta ele) do Brasileirão de 1985.
“O sentimento de pertencimento para um time de bairro é algo muito maior do que quando se torce para um dos chamados “grandes”. Enquanto no “grande” você é mais um, no clube de bairro cada torcedor presente tem sua importância. Quando falta um torcedor assíduo na bancada ele é comentado da mesma forma que um jogador que desfalcou a equipe, até mais”, diz Gustavo ao Última Divisão.
Pioneirismo e rebeldia
O livro, porém, não é apenas para banguenses ou historiadores; é para qualquer pessoa que queria entender como o futebol dialoga com as contradições e conflitos do seu tempo.
Quando Francisco Carregal defendeu as cores do Bangu em um partida contra o aristocrata Fluminense no dia 14 de maio de 1905, um visível incômodo foi sentido na parte nobre da então capital do País. O motivo: Francisco era negro, filho de um português com uma brasileira.
Tanto que em 1907, a Liga Metropolitana, que organizava o esporte no Rio, proibiu o ingresso de atletas “de cor”, fazendo o Bangu abandonar a organização e promover seu próprio torneio, a Taça Bangu. “Nele jogaram outros times do subúrbio: Cascadura, o Brasil Athlético Club e o Esperança F.C (esses dois últimos também formado por moradores de Bangu)”, conta.
“O futebol brasileiro não se tornou o fenômeno de massas que foi ao longo do século 20 por harmonia de classes, mas por uma série de conflitos e disputas pelo direito das populações trabalhadoras jogarem.”
Se a realidade do futebol neste novo milênio é completamente diferente, tornando-se o esporte mais popular do planeta, Gustavo argumenta que agora há outras questões em jogo.
Ele, inclusive, critica a mercantilização do discurso do “ódio ao futebol moderno”: “O capital dominou todos os aspectos do futebol [atual], comercializa até as emoções, até mesmo a rebeldia se transforma em camisas de R$100.”
Os Proletários da Bola foi lançado em 2017 pela editora Multifoco. O livro está à venda no site da editora.
Confira nossa entrevista com o autor:
Última Divisão: Antes de mais nada, conta um pouco da sua relação com o Bangu. Como começou a torcer pelo time?
Gustavo Santos: Sou morador da zona oeste desde que nasci, mas especificamente no bairro vizinho a Bangu, que é Campo Grande. Quando criança por influência dos meus tios, acabava sendo levado aos jogos do Flamengo no Maracanã, mas, a partir do momento que comecei a entender um pouco mais de futebol, passei a pesquisar sobre a história de outros clubes, principalmente os do Rio de Janeiro.
E certamente nenhuma história me encantou mais que a do Bangu: um time de bairro que havia sido vice-campeão brasileiro (prejudicado pela arbitragem), que havia sido duas vezes campeão carioca, e disputado outras tantas finais, além de ter sido campeão mundial em 1960.
Com o tempo comecei a frequentar pouco a pouco as arquibancadas do estádio Proletário, e ali passei a ter outro sentimento que não havia quando ia aos jogos do Flamengo com meus tios. O sentimento de pertencimento para um time de bairro é algo muito maior do que quando se torce para um dos chamados “grandes”.
UD: Que lembranças você tem como torcedor do time?
GS: Sou um torcedor de “nova geração” de banguenses, aqueles que vieram após o período glorioso dos anos 1980, uma geração que escolheu o Bangu apenas pela identidade de bairro e de classe, e pelo que esse clube representa dentro da história do futebol brasileiro. Portanto minhas memórias não remetem ao período em que os banguenses copavam o Maracanã.
Da minha memória como torcedor consistem muitas caravanas em quarta-feiras às 15h, em cidades que ninguém sabia que estava acontecendo jogo, ao período árduo da segunda divisão estadual (2005 a 2008), mas também de pequenos aguantes que ficam na história. Como o campeonato de 2012, em que perdemos todas as partidas do primeiro turno e lideramos no segundo, não podendo perder mais nenhum jogo sob o risco de ser rebaixado, e acabamos parando nas semifinais após um jogo heroico contra o Resende, fora de casa.
Na semifinal tivemos aquele feito de colocar 6 mil banguenses no Engenhão contra o Botafogo e cantar muito mais alto que a torcida dona da casa.
Há outros jogos recentes também como o que jogamos nesse shopping que ousam chamar hoje de “Maracanã” contra Fluminense, em que os banguenses todos em cima das cadeiras de “cinema” cantaram muito alto, mesmo com o revés no resultado. Assim como a nossa participação na Série D esse ano, que possibilitou caravanas também memoráveis e festas muito bonitas na nossa arquibancada, apesar da eliminação precoce, foi algo que já ficou marcado na história recente da torcida, voltar ao campeonato brasileiro após 14 anos.
UD: E como nasceu a ideia do livro?
GS: O livro nasceu de uma pesquisa que realizei ao longo da graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), orientada pelo professor Norberto Ferreras. Inicialmente seria um trabalho de conclusão de curso. Porém devido ao volume de leituras, fontes levantadas e trabalhos de pesquisa envolvendo diversas problematizações, acabaram por me levar a ideia de transformar a pesquisa em livro para que se divulgasse com maior amplitude o trabalho.
A obra no entanto não consistiu num livro de torcedor ou para torcedores do Bangu, por mais que para eles fossem dedicados. Eu não tenho problema algum em assumir meu fanatismo de arquibancada. Porém tentei ao máximo separar o meu trabalho como historiador da prática como torcedor.
UD: Quais questões você levanta em Proletariados da Bola?
GS: O trabalho se preocupa em investigar e responder alguns problemas relacionados à história social do futebol no Brasil a partir do paradigma do primeiro clube operário do Rio de Janeiro, o Bangu A.C. O futebol no Brasil apesar de ser o maior fenômeno da cultura popular é muito opinado, mas pouco pensado socialmente.
Ainda persistem na literatura do futebol brasileiro explicações simplistas de que o futebol teria começado a ser praticado nos meios proletários por mera imitação devido ao sucesso que alcançava no meio das elites, ou abordagens que explicavam seu desenvolvimento no país apenas pelos aspectos culturais desenvolvidos em torno da prática.
Pra mim hipóteses de tais tipos não forneciam uma resposta satisfatória. Afinal, que condições permitiram que o futebol se desenvolvesse num cotidiano fabril desde 1894, numa região isolada a 30 km do centro da cidade, ao mesmo tempo que era introduzido também pela primeira vez nos círculos dos colégios e clubes burgueses? Que condições permitiram que um clube que teve a iniciativa de fundação a partir de técnicos advindos da Grã-Bretanha conseguisse aglomerar operários comuns em torno do mesmo? Que condições e que conflitos se desenrolaram quando um clube como o Bangu coloca o primeiro negro em campo do futebol carioca, onde a abolição da escravidão era algo recente, e parte da burguesia brasileira almejava um processo de institucionalização do racismo através de pretensas teorias científicas e da inserção de práticas modernas, entre elas o futebol, onde o branco deveria se sobrepor ao negro?
UD: Sobre isso, como o Bangu ajudou na inserção do negro no futebol brasileiro?
GS: Quando o Bangu começou a colocar atletas negros já nos seus primeiros times, isso gerou grande incômodos dos clubes elitistas, ao ponto de em 1907 a Liga Metropolitana proibir o ingresso de atletas “de cor” na liga, fazendo com o que o Bangu se desligasse da mesma, e promovesse seu próprio torneio a Taça Bangu.
Esse torneio acabou inspirando o surgimento de outros clubes pelos subúrbios e se formasse a Liga Suburbana, um espaço onde esses clubes pudessem jogar sem as regras excludentes da Liga Metropolitana, onde estavam os “grandes” clubes como o América, Fluminense e Botafogo.
Porém, a inclusão de atletas negros no Bangu acabou muito mais por deixar escancarada a marca racista da sociedade da época do que forjar um mito de democracia racial, como algumas histórias oficiais de clubes como a Ponte e o Vasco tentam forjar nos dias atuais. Clubes como o Bangu sofreram inúmeras penúrias para resistirem durante o período amador, pelo seu conteúdo de classe, pois em um curto período de existência era um clube majoritariamente formado por sócios e jogadores operários e negros.
Normas como a Lei do Amadorismo que restringiam uma série de profissões braçais e analfabetos (maioria da população), perdas de mando de campo devido ao comportamento não sportmen da torcida operária do Bangu e outras tantas tentativas de exclusão, marcaram todo o nosso período amador.
O futebol brasileiro não se tornou o fenômeno de massas que foi ao longo do século 20 por harmonia de classes, mas por uma série de conflitos e disputas pelo direito das populações trabalhadoras jogarem.
UD: Como você vê a relação entre proletariado e futebol nos dias atuais?
GS: O proletariado é um elemento importante não só para clubes que tiveram esse tipo de origem. como também para a massificação dos clubes e do esporte como um todo. Foi o trabalhador que inventou todos os signos que compõem toda essa riqueza da cultura futebolística, seja lá qual agremiação ele torça.
A figura do torcedor é essencialmente uma figura proletária. É o cara que conta a moedinha na porta do estádio e pede pros amigos completarem o ingresso, o cara que dá calote no transporte público, que viaja pra outros estados mesmo sem ter dinheiro pra se alimentar. Essas loucuras que fizeram o futebol ser o que ele foi, são comportamentos que somente a classe trabalhadora pode ser capaz de criar.
Se hoje essa ligação pode estar em baixa, isso se deve ao processo de elitização e extirpação de todos os elementos da cultura popular do futebol. Hoje pela primeira vez o capital dominou todos os aspectos do futebol, comercializa até as emoções, até mesmo a rebeldia se transforma em camisas de R$100.
Há uma necessidade de luta pela refundação do futebol como um todo, e que os torcedores se tornem não só críticos as mudanças, mas também agentes políticos que se rebelem a todas as formas de aniquilamento da cultura futebolística, inclusive aos fetiches criados para mercantilizar as lutas.
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