Ao longo de décadas, a lista de astros que atuaram no futebol do Rio de Janeiro é grande. De Oscar Cox a Gabigol, é impossível não citar nomes como Garrincha, Roberto Dinamite, Romário, Assis, Washington, Renato Gaúcho, Zico, Júnior, Rivelino, Túlio Maravilha… Entre tantos outros.
Mas em meio aos astros, há também aqueles nomes que se tornaram lendas por motivos menos tradicionais. Passagens curiosas em clubes maiores, histórias longevas em times menores, relatos extracampo… Enfim, todo tipo de característica. Nos últimos anos, como não lembrar de Ely Thadeu, Bandoch, Lopes “Tigrão”, Diguinho, Cobi Jones, Aislan, Cadão, Borçato, Bruno Mezenga, Cafezinho e Pachola, para ficar em apenas alguns exemplos?
Se você não se lembra deles, tudo bem: a Lendas do Futebol Carioca te ajuda.
A página do Facebook está no ar desde 10 de abril de 2014 e reúne desde então mais de 10 mil fãs. Ali, o economista Felipe Gil e o jornalista Daniel Collyer mantém um acervo de provocar arrepios e risadas em torcedores de diversos times – não apenas do Rio.
Tudo surgiu, eles contam, de uma brincadeira comum entre tantos torcedores: lembrar de jogador perna de pau. “A gente estava jogando bola, jogava todo sábado à tarde, no horário suicida em que a gente jogava. Tínhamos perdido, para variar, e estávamos de fora – eu, o Daniel e um amigo nosso que é tricolor. Então, a gente começou a conversar sobre jogadores bizarros”, conta o flamenguista Felipe, mestre em economia internacional pela UERJ. “Ele tinha um álbum no saudoso Orkut com várias lendas do Flamengo. Tem vários que acabaram aparecendo do Flamengo depois. Entre eles, o Douglas Silva, que foi nosso primeiro perfil”, acrescenta vascaíno Daniel, que acumula passagens por veículos como GloboEsporte.com e Esporte Interativo.
No caso de Douglas Silva, o “conhecimento bizarro” da dupla – palavras do próprio Felipe – logo se comprovou. Não apenas pelo que se veiculou na imprensa esportiva, mas pela própria vivência nas torcidas.
“Teve aquela final Flamengo x Santo André na Copa do Brasil (de 2004), o Flamengo precisava de um gol desesperadamente, Teve uma falta perto da meia-lua, ele jeitou a bola para cobrar, eu tive esperança ali. Ele deu uma porrada que foi tão longe do gol… Eu estava na cadeira do Maracanã, a bola pegou umas duas cadeiras do meu lado”, lembra Felipe. O Santo André venceu aquele jogo no Maracanã por 2 a 0 e foi campeão, enquanto o volante passou depois por clubes como Criciúma, Avaí, Bangu, Olaria e Brasiliense, aposentando-se no começo de 2015 após passagem pelo Ceres (RJ).
O surgimento da página
O conhecimento da dupla rendia muita piada, é claro. Mas como surgiu a ideia de criar uma página no Facebook para compartilhar as bizarrices?
Rapidamente, os responsáveis – originalmente, eram três, mas um deles deixou o barco por falta de tempo para colaborar – perceberam que a rede social seria a plataforma mais adequada.
“Era o que estava mais bombando. O Instagram, acho que ainda não tinha para Android, era uma parada muito elitizada, só para quem tinha iPhone. O Twitter tinha o limite dos 140 caracteres e ainda não tinha isso de thread que tem hoje. Até poderia ser uma coisa que daria para fazer, mas não sei se ficaria legal”, explica Daniel. “Acho que o Facebook é melhor. Mas é uma coisa minha mesmo, pessoal. Sei que o Instagram é bom pra cacete, mas a gente prefere o Facebook.”
O ponto de vista é semelhante ao de Felipe. “Quando a gente surgiu, foi a primeira ideia. ‘Vamos fazer uma página no Facebook?’ Eu não tinha, particularmente, Instagram nessa época. Twitter, até tinha, mas é muito limitado, né? Cento e quarenta caracteres… E o blog, eu não sei o que o Daniel pensa disso, mas, na minha cabeça, acho que a parada mais acessível ao povão mesmo é o cara que entra no Facebook”, analisa. “O Twitter é meio terra de ninguém, mais zoeira assim, mas não é todo mundo que tem Twitter, não é todo mundo que tem Instagram. Mas porra, Facebook, todo mundo tem, entendeu? Eu só tinha Facebook na época, então acho que juntou uma coisa com a outra. Eu não sei também, se a Lendas fosse criada no Instagram ou em algum blog, se a gente teria mais de 10 mil seguidores”, acrescenta.
Com a ideia na cabeça e a ferramenta definida, logo surgiu a primeira postagem. Obviamente, Douglas Silva, o da falta que foi parar nas cadeiras do Maracanã, foi o homenageado. Chamado de Douglas “Lecter” Silva, foi descrito como “volante sanguinário”.
A descrição curta do jogador, que ainda nem havia se aposentado, deu início a um estilo bastante peculiar da página. De lá para cá, os textos deixaram de parecer legendas de fotos e ganharam características bem típicas da internet, imprimindo humor em letras maiúsculas, descrições às vezes exageradas e links que embasam os relatos.
“No início, a gente tinha a ideia de postar um jogador e um breve resumo sobre o cara. Uma coisa muito simples para ser mais dinâmica. A página foi mudando ao longo do tempo”, explica Daniel. “Essa questão do Caps Lock, eu já adquiri para minha vida também. A gente tem grupo no WhatsApp e fala assim. Quando quer dar ênfase a alguma coisa, alguma palavra engraçada, alguma coisa diferente, a gente bota essa caixa alta. Se eu estou falando com minha esposa no chat do Facebook ou no WhatsApp, eu falo assim”, conta.
Para o economista Felipe, dono de um discurso mais formal, o texto da página às vezes pede uma ajuda do amigo. “Quando eu faço, o Daniel dá uma revisada. O Daniel é jornalista, né?”, explica. “Ele dá uma melhorada no texto para ficar mais informal, algo mais popular. Porra, eu sou acadêmico, então para mim, de repente está bom, mas para quem está de zoeira, não está maneiro”, completa ele – que, admite, também pegou o “vício” das letras maiúsculas em conversas virtuais informais.
Surpresa: as lendas se descobriram na página
Aos poucos, vieram as postagens. Com elas, os seguidores e os comentários. E, pouco depois, vieram os próprios jogadores.
De tempos em tempos, algum seguidor marcava a “lenda” homenageada ou um familiar. Não demorou muito para que os ex-atletas retratados encontrassem a página.
E não são poucos os relatos. “É maneiro quando aparecem ex-jogadores. Eu mesmo sou amigo no Facebook do Lê, ex-atacante do Flamengo, do Jack Jones… Como a página cresceu, acabou atraindo esses caras. A gente fez uma postagem uns tempo atrás do Pacato, goleiro do Itaperuna, e apareceram vários amigos do cara na página. A galera com mais de 40, 50 anos. Certamente ele não tem Facebook, porque muitos amigos dele apareceram na página”, conta Felipe.
“Teve um cara uns tempos atrás que jogou no Vasco, no Vitória, o Allan Dellon, pedindo para a gente fazer um perfil dele. Tipo, ‘me zoem’. Apareceu para a gente fazer. Teve o Mayaro, do Fluminense, que apareceu no post que a gente fez, alguém marcou ele. Ele mandou salve, abraço para a galera e tal. Quem geralmente aparece com mais frequência são o Lê e o Jack Jones”, acrescentou.
Mas é claro que, em uma página de humor que às vezes pisa em alguns calos, tem a galera que não sabe brincar. E um deles virou folclore: a “viúva do Josiel”.
“O cara ficou puto porque a gente fez o perfil do Josiel”, conta Daniel. “Na época do Flamengo das vacas magras, vice da Copa do Brasil, essas paradas. O cara ficou putaço, mano. Não entendeu que a página era uma página de humor e ficou muito puto. ‘Desrespeito com o Josiel’, ‘correspondeu’, ‘fez não sei quantos gols’…”
Em compensação, um homenageado acabou protagonizando um episódio especial: Reginaldo Pinguim, atacante com passagem pelo Botafogo no começo dos anos 90, que passou também depois por Madureira, Friburguense e Cabofriense, entre outras equipes.
“Teve um legal, que foi o Daniel que postou: o Reginaldo Pinguim, atacante ex-Botafogo e Friburguense. Foi um cara bem desconhecido, jogou no futebol do Rio por muito tempo, mas nunca brilhou, não arrebentou no Botafogo. O filho dele falou com a gente, mostrou a postagem para o pai dele. Falou que o pai dele ficou super emocionado, contou para gente a história. A gente até postou ele falando que o pai ficou muito feliz, falou que se a gente fizesse alguma coisa de um outro jogador da época, ele podia ajudar. Esse tipo de feedback é maneiraço para a gente”, conta Felipe.
E entre os feedbacks, outro virou referência: o da postagem de Bruno Mezenga, que recebeu um comentário bastante específico de um ex-adversário do jogador, revelado pelo Flamengo, nos tempos de torneios escolares.
“Os feedbacks mais legais são das próprias pessoas que falam que a página é engraçada, que às vezes o dia está uma merda, entra lá e, porra, fica rindo, para rever posts antigos. Eu mesmo sou um cara que volta e meia vejo o post do Bruno Mezenga e rio igual à primeira vez que eu vi”, lembra Felipe. “A gente fez um post, podia ser um post normal, mas teve a história que um cara contou em off – a gente editou, contou a história toda, na íntegra, do ‘nariz de Deus”, relembra.
(Essa, a gente não vai contar. Você vai ter que ler a postagem!)
Sucesso de público
Os fãs que chegaram à página logo se inspiraram e repetiram o projeto em outros estados. Em pouco tempo, surgiram comunidades dispostos a relembras as lendas de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.
“As primeiras páginas foram logo no primeiro ano da página (do RJ), em 2014 mesmo. Se você buscar lá no álbum, você vai ver, foi Lendas do Futebol Paulista. A gente apelidou de ‘filial’. Sabe-se lá o porquê, os caras largaram a página. Desde abril de 2019, os caras não postam. Se você clicar no link de Lendas do Futebol Paulista, redireciona para uma página ‘Nostalgia Futebol Clube’. Aí tem coisa de futebol de videogame, Winning Eleven e tal. O moleque mudou o perfil da página e largou total. Era uma ideia legal, porque paulista tem pra cacete, tem um monte de lenda foda”, relata Daniel. “Logo na sequência, veio a Lendas do Futebol Mineiro, em dezembro. Os caras apagaram a página mesmo – não lembro quando, mas foi logo na sequência.”
Curiosamente, a página fez seguidores com duas peculiaridades em sua história. Primeiro: influenciou o público mesmo tendo alguns hiatos longos – eventualmente de meses – nas postagens. Segundo: interessados em replicar o modelo pediam autorização para tal.
“Surgiu um maluco mandando (mensagem) para a gente assim: ‘sou aqui de Minas Gerais, curto a página de vocês, estava pensando em fazer a Lendas do Futebol Mineiro e tudo. Pô, vocês acham maneiro?'”, lembra Felipe.
“O que eu acho maneiro – e acho que o Daniel também – é que as pessoas falam com a gente como se a gente tivesse algum tipo de propriedade intelectual da parada, entendeu? O certo seria o cara, tipo: ‘vou fazer uma igual e foda-se’. Mas em todos os casos, as pessoas falaram com a gente antes. A gente acha que isso é maneiro, que a gente atingiu algum grau de respeito – não respeito no modo imperativo, mas num bom sentido”, completa.
A página rende alguns negócios à dupla, que abriram no fim de 2019 um e-commerce da Lendas. Mas como se trata de um hobby, Daniel e Felipe não se preocupam com as restrições do alcance que o Facebook impõe às páginas. Em tempos de publicações impulsionadas e anúncios na timeline, os dois garantem: a audiência ali é 100% orgânica, praticamente artesanal.
“Eu vejo muita gente reclamando disso, de impulsionamento de conteúdo, que agora se você não pagar, vai ter algum prejuízo no fluxo de visitantes… A gente nunca ligou na verdade para isso. Sem patrocínio, nunca se importou muito com essas restrições do Facebook”, assegura Felipe.
“Vou ser bem sincero: eu até acompanho isso mais do que o Felipe. Como eu trabalhei no Esporte Interativo, lidava direto com o Facebook, então aprendi bastante coisa sobre isso. Mas vou ser sincero com você: como a gente não tem uma frequência, e eu sempre procuro postar pela manhã – que a gente imagina que é o cara que está chegando no trabalho, está no intervalo da escola, da faculdade, pega e abre no celular para ver… Tem dado um resultado legal. Um começa a marcar o outro e por aí vai”, descreve Daniel.
“Mas que gente tenha sentido (impacto negativo no fluxo de visitantes), não. Como a gente teve os hiatos e tudo, e a gente nunca pagou impulsionamento nenhum… Nunca botamos dinheiro de nada. Todo nosso alcance é orgânico. Um marca o outro, sempre. ‘Fulano, lembra dele, esse filho da puta, esse cara? Esse cara fez não sei o quê.’ O cara vai, marca o amigo, a gente comenta… A gente procura responder sempre, responder o máximo possível a galera, porque a gente sabe que isso dá uma resposta legal no engajamento orgânico”, acrescenta.
Hoje, apesar do público grande e fiel, os dois seguem com uma estratégia inesperada na administração da página. Os posts são feitos sem muita programação cronológica – ou seja, o conteúdo é criado quando dá vontade. A única organização é uma planilha, no qual os dois acertam o que já foi feito, o que está sendo feito e o que vai ser feito.
“Não tem cronograma nenhum, velho. É meio que do nada. O Daniel me manda assim: ‘vou fazer tal cara’. Beleza. Do nada, eu mando para ele também. Não tem nada de cronograma, porra nenhuma. Tanto que, desde que a gente voltou, eu até fiquei de fazer uns novos – a gente tem uma planilha no Excel e coloca todo mundo que já esteve na página. Quem já foi está em verde e quem não foi está em vermelho. Eu sempre sorteio na hora, vem as pessoas e eu faço”, conta Felipe.
Daniel procura escolher os perfilados, mas a rotina acaba às vezes atrapalhando as postagens dos dois. “Não tem cronograma mesmo. Às vezes, estou trabalhando pra caralho, às vezes o Felipe está preparando coisa dele de aula e tudo. Às vezes, tem tempo, às vezes não tem. Nosso cronograma é o famoso ‘à moda vai simbora’ ou ‘à moda caralho’ mesmo, como fala lá no Rio”, diz o jornalista, que se mudou em 2019 para Estados Unidos.
“Cariolixão”
Mas nem tudo é oba-oba entre as lendas. Entre as postagens da página, é comum ver o Campeonato Carioca chamado de “Cariolixão”. E a crítica, embora carregada de humor ácido, evidencia a insatisfação da dupla com o principal torneio estadual do Rio de Janeiro.
“Eu acho o Campeonato Paulista de muito melhor nível que o Carioca. No Carioca, você já sabe que vão chegar Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo, vão se enfrentar em 200 semifinais e finais, e (o campeão) vai ser um dos quatro. O Paulista, não: tem uma surpresa, um pequeno chegando na final – e os pequenos paulistas nem se comparam aos pequenos daqui, são times da Série B do Campeonato Brasileiro. Aqui não”, analisa Felipe.
“Aqui, os pequenos são clubes quase de várzea, às vezes fodidos na Justiça, que não têm dinheiro para viajar, para se estabelecer no campeonato. Muitas vezes, os grandes ajudam os pequenos. É meio foda, meio diferente. Não tem nem como esperar muita coisa desses times. É uma pena. Isso leva a um campeonato ruim. Eu não conheço uma pessoa que ache o Campeonato Carioca bom”, acrescentou.
Daniel também não se empolga. “É um problema, né? Acho que até o ano 2000 mesmo, até o tri do Flamengo (em 2001), ainda dava para engolir. A partir daquele momento, bicho, meu Deus do céu… Os times eram bons, até os pequenos eram bons. Aí começou um negócio, porque tem a cota de TV da Globo que deu problema nesse ano – finalmente deu problema, porque essa parada já tem muito tempo”, analisa.
Hoje, os clubes menores na elite do Rio de Janeiro sofrem para arrecadar receitas capazes de formar elencos que se equiparem aos dos quatro grandes, tornando o Carioca menos atraente. Para o jornalista, a solução é tirar os clubes maiores das primeiras fases do torneio e colocar os menores para uma disputa interna antes de fases decisivas.
“Botava os pequenos para jogar, enquanto isso os grandes estavam em pré-temporada. Passavam quatro pequenos. Cada pequeno pega um grande. Quem ganhar, passa: semi, final e resolve o campeonato. Dá para fazer isso em oito datas para os grandes. Menos até: quartas, semis e finais, ida e volta. Seis datas, ia ser muito bom. Isso fazendo ida e volta. Por mim, o Carioca não existia mais. Mas pelo humor da página, a gente fala: ‘o Carioca é foda e tal’.”
Mas se o presente e o futuro não empolgam, os dois guardam boas lembranças do Campeonato Carioca de anos anteriores. Curiosamente, de confrontos entre seus times.
Para o vascaíno Daniel, a grande lembrança vem da vitória por 5 a 1 sobre o Flamengo na decisão da Taça Guanabara de 2000. Aquele 23 de abril, domingo de Páscoa, ficou marcado pelos ovos de chocolate que o presidente vascaíno, Eurico Miranda, distribuiu.
“Flamengo, chocolate, foi bom demais. Bom pra caraca”, conta. “Acho que o 5 a 1 foi muito marcante, chocolate da Páscoa e tudo aquilo que o Eurico fazia para promover o clássico.”
Felipe deu o troco em 2001, quando o Flamengo foi tricampeão carioca graças ao gol de Petkovic em cobrança de falta no fim do segundo jogo das finais: vitória por 3 a 1.
“A gente, é claro, tem uma ligação muito forte em relação a lembranças. Eu lembro muito que os gols que eu mais comemorei na vida foram dois gols de Campeonato Carioca: o do Rodrigo Mendes contra o Vasco em 1999 e o gol do Pet, obviamente. Aquilo foi fantástico”, relembra.
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