No dia 7 de agosto de 1919, um carteiro chamado Benedito Peixoto reuniu-se com um grupo de amigos na rua 24 de Maio, no centro de Manaus, para fundar um clube de futebol. Ficou decidido que o nome seria Euterpe Football Club e que suas cores seriam o verde e o branco.
Mas o que tornava esse time diferente das outras agremiações que surgiam aos montes na região norte do País naquele período estava em um artigo em sua ata que dizia que apenas pessoas negras poderiam fazer parte do clube. Benedito, assim como os outros fundadores, era negro em uma época em que seus semelhantes eram proibidos de praticar o esporte bretão.
Leia também
- Será mesmo que atletas negros nunca se manifestaram contra o racismo no Brasil?
- O amor ao clube não é justificativa para passar por cima do respeito ao próximo
Infelizmente, não se tratava de um caso pontual no Amazonas. No restante do Brasil, o futebol ainda era um esporte majoritariamente das elites, que viajam para a Inglaterra e traziam consigo uma bola e um livro de regras debaixo do braço.
Mas, aos poucos, a diversão dos ricos atraía cada vez mais populares, que também montavam suas agremiações. No Rio Grande do Sul, na década de 1910, era formada a Liga dos Canelas Pretas, formadas por clubes de maioria negra e parda. E em 1917, em São Paulo, foi fundada a Associação Athletica São Geraldo, o time operário da Barra Funda.
No caso do Euterpe, a curiosidade é o pioneirismo em uma região que hoje chamaríamos de “fora do eixo” do futebol. Além de ser o primeiro clube exclusivamente negro da região Norte do país, o Euterpe também é o primeiro clube só de negros a participar de um campeonato estadual no Brasil.
Essa é uma história que estava fadada ao esquecimento. Não bastasse estar distante da então Capital Federal em uma época em que a comunicação em massa era um sonho distante, o Euterpe teve vida curta e repleta de contratempos. Quem descobriu boa parte do que sabemos hoje foi o historiador Gaspar Vieira Neto, que pesquisa a história do futebol amazonense e conversou com o Última Divisão.
Filhos da terra
Ele conta que mesmo no Amazonas pouco se sabia sobre o Euterpe até a década de 2000. Os únicos registros da existência do clube são de notícias de jornais da época. A confirmação de que o clube já foi um dia exclusivo para negros só foi possível após Gaspar encontrar uma reportagem em um jornal nos anos 70, cuja foto é a mesma que abre esse post.
Por isso tudo, mesmo o nome escolhido para batizar a equipe é motivo de controvérsia. A história mais aceita é que seria uma referência à Euterpe oleracea, o popular açaí, fruta de cor escura bastante comum na região amazônica. Outras fontes dizem que o nome seria um trocadilho com a palavra Eu Preto, deixando claro o caráter identitário do clube.
Se essa versão é verdadeira ou não, impossível dizer por ora, mas é inconteste a importância do Euterpe na representatividade do negro no futebol. Em 1920, após disputar um jogo amistoso, o clube passou a fazer da Federação Amazonense de Desportos Atléticos (FADA) e conquistava o direito de duelar no campeonato estadual contra os grandes clubes da época.
Uma pena que em campo os resultados foram bastante modestos. Segundo Gaspar, o Euterpe jamais ganhou um título e normalmente figurava nas últimas posições da tabela. Ele foi vítima da 3ª maior goleada da história do futebol amazonenes: um 19 a 0 do Nacional. Ainda abandonou o estadual de 1921 por falta de recursos e, em 1927, se desfiliou da FADA e passou a disputar apenas amistosos.
Fora de campo, porém, o Euterpe tinha lá seus seguidores. O clube era famoso por organizar grandes bailes em sua sede, que atraíam todo o tipo de público. Tanto que, dois anos após sua fundação, o clube decidiu modificar sua ata para permitir que pessoas brancas e pardas pudessem se associar.
O clube de Dodó
A ausência de bons resultados não significa que a existência efêmera do Euterpe tenha sido um completo fracasso. Foi em seus campos que saiu o atacante Domiciano Borges, o Dodó. Artilheiro nato, Dodó foi um dos primeiros jogadores negros de destaque de Manaus e era tão importante para a equipe que o Euterpe também era chamado de Clube de Dodó.
Em seus anos finais, o Euterpe passou também a organizar torneios comemorativos no Parque Amazonense. Um evento célebre foi em 21 de abril de 1927, quando foi realizado um torneio beneficente ao ex-jogador Raimundo Andrade, o Picota, que estava muito doente. A renda arrecadada seria usada para bancar os custos do tratamento. Porém, Picota acabou falecendo tempos depois.
A partir de 1930, as informações sobre o Euterpe vão sumindo até cessarem por completo. Gaspar conta que não se sabe exatamente o que aconteceu com o clube, mas que muito provavelmente ele acabou extinto.
O pesquisador conta também que não encontrou nenhum caso de racismo contra o clube, mas, dado o contexto da época, é quase certeza que eles tenham sofrido algum tipo de preconceito, mesmo que de forma velada.
De qualquer forma, no ano da extinção do Euterpe, o futebol brasileiro já tinha feito progressos na questão do negro no futebol. Em 1922, para que Arthur Friedenreich pudesse jogar a Copa América, foi derrubada a absurda lei que proibia a convocação de atletas negros e mulatos na seleção — e o Brasil foi campeão do torneio. Em 1923, o emergente Vasco conquistava o campeonato carioca com uma equipe de maioria negra, o que despertou a ira da cartolagem da época, que inventou uma nova liga para excluir o cruz-maltino dos torneios. Além disso, nomes como Leônidas e Domingos da Guia começavam a atrair mais público aos estádios.
Futebol é o reflexo de uma sociedade, um espelho de todas as nossas mazelas e contradições. Mas a recíproca também é verdadeira: o futebol tem o poder de provocar mudanças sociais profundas. E, há 100 anos, o Euterpe deu um passo pequeno, porém importante, na luta contra o racismo e é preciso saudar a história desse clube pioneiro.
Comentários