A história é longa, mas vale relembrar e contextualizar para que a pergunta que dá título a esse texto possa ser respondida sem deixar dúvidas. Oswaldo Alvarez (mais conhecido como Vadão) assumiu o comando da seleção feminina de futebol em 2014 e permaneceu por quase dois anos no cargo. Durante o período, a equipe se preparava para disputar as duas maiores competições do cenário esportivo: Copa do Mundo em 2015 (realizada no Canadá) e os Jogos Olímpicos em 2016 (no Rio de Janeiro). Para que a equipe tivesse melhor preparo e bom desempenho nos torneios, montou-se a “seleção permanente”, fazendo com que a CBF fizesse o papel como de um clube de futebol e oferecesse toda sua estrutura para as jogadoras: treinamento intensivo, bom salário, preparo físico, nutricional e etc. Nunca se investiu tanto no preparo das jogadoras como durante esse período e a ideia era clara: fazer com que o futebol feminino brasileiro pudesse avançar e alcançar bons resultados nas competições.
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Vadão jamais havia trabalhado com o futebol feminino quando chegou ao cargo mais importante da CBF. O treinador comandou diversos clubes do futebol masculino (XV de Piracicaba, Atlético-PR, Corinthians, São Paulo, Ponte Preta, Bahia, Vitória, Goiás, São Caetano, Guarani, Portuguesa, Sport e Criciúma) e entre seus títulos conquistados estão a Série C de 1995 pelo XV, os estaduais por Atlético-PR (2000) e Criciúma (2013) e um Torneio Rio-São Paulo em 2001, dirigindo o São Paulo.
Durante os 30 meses em que comandou Marta e cia., Vadão contabilizou 30 vitórias, 10 empates e 12 derrotas em jogos oficiais. A seleção foi eliminada do Mundial nas oitavas de final e ficou em quarto lugar nos Jogos do Rio de Janeiro. O técnico foi demitido em novembro de 2016 e a nova escolhida para o cargo foi uma mulher, a primeira a comandar a seleção nacional: Emily Lima. A treinadora tem as licenças da própria CBF (algumas que nem os técnicos do masculino têm), coleciona cursos e anos de experiência em times de tradição no futebol feminino, como o São José. Era, acima de tudo, a pessoa mais preparada para o cargo.
A passagem de Emily foi curta, porém intensa e deixou marcas. Ela chegou prometendo o que a seleção feminina nunca viu: trabalho, planejamento, análise de desempenho, avaliação de atletas em todo o país. Mas aí vieram três derrotas contra Austrália, uma das seleções que mais tem se fortalecido nos últimos anos, e, menos de um ano depois do anúncio “revolucionário”, a CBF decidiu demitir Emily Lima. Foram 10 meses no cargo, nenhuma competição oficial, apenas 13 jogos e um aproveitamento de 56,4%, mas a entidade entendeu que “por questão de resultado”, não dava mais para seguir com Emily no posto.
As próprias jogadoras haviam declarado seu apoio à permanência do trabalho e da comissão técnica de Emily por meio de uma carta, na qual 24 das 26 atletas assinaram em concordância, mas a opinião das jogadoras não foi levada em consideração e, na sequência, algumas delas gravaram vídeos e declarações desistindo de vestir a camisa da seleção brasileira.
Em seu depoimento, a atacante Cristiane – que defende o Brasil há 17 anos e é a maior artilheira do país em Jogos Olímpícos – declarou que “não tinha mais forças para aguentar”, e é claro que ela se referia sobre as decisões tomadas pela alta cúpula da CBF. “Foi bem difícil para mim quando essa comissão foi mandada embora. Ano passado eu me chateei por causa da minha lesão e eu desanimei com a seleção. Essa comissão me mostrou coisas diferentes, a Emily falou comigo e eu voltei. E aí simplesmente tiraram essa comissão sem que a gente conseguisse entender. Todas as outras comissões que passaram tiveram bastante tempo de trabalho, essa não. Por quê? Porque era mulher? Porque trabalhava demais? Porque brigava por nós? São coisas que a gente não consegue entender. São porquês que a gente não vai ter resposta e eu nem sei se quero mais essas respostas”, declarou a jogadora, que atualmente defende um clube chinês.
Depois de Cristiane, as atletas Rosana, Fran, Andréia Rosa e Maurine tomaram a mesma atitude e seguiram a mesma linha de discurso, sinal claro de que as atletas já não aguentam mais serem ignoradas e não aceitam servir pessoas que não entendem nada sobre a modalidade. O esporte é o mesmo, mas é importante ressaltar que as realidades do futebol masculino e do feminino são bastante diferentes: entre elas, falta de clubes que banquem a prática feminina, salários baixíssimos, falta de estrutura, sem apoio de patrocinadores, pouquíssima visibilidade, sem transmissão de partidas, falta de organização e informação sobre os campeonatos e etc. As jogadoras de futebol deste país ainda são classificadas como amadoras e essa realidade existe há muito tempo.
Depois de muitas revelações por parte de Emily Lima sobre como era desempenhado o trabalho da CBF – em especial do coordenador de futebol feminino da entidade, Marco Aurélio Cunha – e a falta de respaldo que sentia, ficou evidente o que muita gente já sabia: o desenvolvimento e a evolução do futebol das mulheres nunca foi prioridade para os dirigentes da Confederação.
Mas o fato é que o posicionamento das atletas ganhou destaque no mundo inteiro. Esse movimento jamais havia acontecido dentro de uma seleção brasileira e as mulheres se encarregaram de dar luz ao problema que se arrasta por décadas. Contaram também com o apoio de jogadoras estrangeiras e das ex-atletas que em anos atrás, sofriam dos mesmos males, de maneira até mais marginalizada.
Dos Estados Unidos, Sissi, a primeira grande craque do futebol feminino brasileiro na década de 90, manifestou-se com outras companheiras em um novo comunicado destinado a CBF. Além dela e de Cristiane, que já haviam se posicionado antes, Formiga (a jogadora que mais vestiu a camisa da seleção brasileira entre homens e mulheres e que acumula mais de 20 anos na equipe), Marcia Tafarel (uma das pioneiras da seleção) e Juliana Cabral (a capitã da prata em 2004), entre outras, fizeram um apelo para que a entidade máxima do futebol inclua mulheres em cargos de decisão – especialmente no futebol feminino.
O movimento é forte e chegou a repercutir em um dos jornais com maior audiência do mundo – o New York Times escreveu a matéria “Jogadoras de futebol do Brasil em revolta contra a Confederação” falando justamente sobre a crise da modalidade que a CBF insiste em ignorar. Elas citam o “péssimo tratamento das mulheres como líderes e jogadoras” pela CBF, o “fracasso dela em providenciar oportunidades relevantes para as jogadoras avançarem até posições de liderança”, a “falta de mulheres” nesses papéis na entidade, e “o fracasso em apoiar e estimular o desenvolvimento do futebol feminino em todos os níveis” e pedem que reformas sejam feitas em prol da igualdade de gênero no futebol.
No documento, as ex-jogadoras sugerem algumas mudanças, como a inclusão de “mulheres em todos os níveis de tomada de decisão, especialmente no seu Conselho”, da mesma maneira que a Fifa passou a fazer nas reformas implantadas no ano passado. Além disso, elas pedem a “criação de um Comitê de Futebol Feminino dentro da CBF” e ressaltam: composto de experts em futebol feminino.
O presidente Marco Polo Del Nero reservou o dia 17 de outubro para receber as atletas na sede da CBF e discutir os pontos levantados por elas na carta. Enquanto isso, Vadão prepara a seleção para disputar um torneio amistoso na China – onde irá enfrentar as equipes do México, Coréia do Norte e as donas da casa – e o Brasil segue despencando no ranking das melhores seleções da Fifa. Para lembrar: desde que José Maria Marin e Marco Polo chegaram ao alto clero da CBF, em 2012, o desempenho da seleção brasileira de futebol feminino só decaiu. Em 2013, o Brasil era o quarto colocado, no ano seguinte, caiu para oitavo, em 2015 subiu para sétimo e hoje ocupa sua pior posição no ranking, o nono lugar.
(Crédito da imagem que abre o texto: Lucas Figueiredo/Mowa Press)
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