A cada ano, a Ferj (Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro) nos brinda com seu principal e mais charmoso torneio: o Campeonato Carioca. Você pode não gostar, mas o valor da competição é inegável.
No Última Divisão, nós gostamos muito de contar histórias sobre o Cariocão. Mas para entendermos a importância do certame, vale a pena ver como era o futebol no Rio de Janeiro antes da criação da Ferj.
Antes da Ferj
O UD já contou (ou tentou contar) a história do futebol do antigo estado do Rio de Janeiro. Se você tem curiosidade sobre o futebol fluminense, sobre as histórias do futebol do interior do atual Rio de Janeiro, vale a pena conferir.
De qualquer forma, não custa relembrar e aprofundar ainda mais, certo?
Oficialmente, o Campeonato Carioca começou em 1906, como uma competição citadina, disputada por seis times do estado da Guanabara, dos quais três estão na ativa até hoje: o Fluminense (campeão daquela edição), o Botafogo (que embora fundado em 1904, passou a ser como conhecemos apenas em 1942) e o Bangu. Na época, o futebol era um esporte elitizado e voltado somente para a alta sociedade da capital federal, com o Bangu sendo “intruso”.
Já em 1915, a cidade de Niterói, capital do antigo estado do Rio de Janeiro, começou a organizar o seu próprio campeonato, por meio da Liga Sportiva Fluminense. Porém, o antigo estado passou a ter ligas divididas, e em 1925, o Serrano Football Club, de Petrópolis, se tornou o primeiro time de fora de Niterói a ser campeão fluminense. No entanto, com tantas brigas, o campeonato acabou em 1927, sendo que apenas seleções municipais jogaram o Campeonato Fluminense de 1928 até 1940.
Anos depois, em 1941, o novo Campeonato Fluminense deixou de ser apenas citadino e passou a integrar todo o antigo estado, com times de Niterói, Barra Mansa, Petrópolis, Nova Friburgo e Campos, entre outras cidades. Este campeonato foi disputado até 1945. Entre os times que jogaram o Campeonato Fluminense nesta época, estavam o Resende Futebol Clube (que só viria a se tornar profissional em 2006), o Goytacaz (que passaria a jogar com os times da capital a partir de 1976), o Entrerriense (time de Três Rios que viria a ser bicampeão da segunda divisão do Campeonato Carioca, em 1994 e 2001), o Americano de Campos (que passou a jogar com os grandes da capital junto com o Goytacaz), o Volta Redonda (então recém-fundado), e o Floresta de Cambuci (que em 2007 perdeu uma disputa por uma vaga na elite do Campeonato Carioca para o novato Duque de Caxias e que tinha Pipico no elenco).
Com o passar dos anos, o campeonato da capital federal passou a ganhar notoriedade e muita fama. Em 1933, o Distrito Federal adotou o profissionalismo junto com São Paulo. Nos anos 40, a Federação Carioca de Futebol aceitou a filiação de um time de Niterói – o Canto do Rio (fundado em 1913) se tornou o primeiro time de fora da capital federal a disputar o Carioca. Porém, ele também foi o primeiro time a jogar dois campeonatos estaduais ao mesmo tempo, sendo que enquanto jogava o Campeonato Carioca como profissional, disputava o Campeonato Fluminense como amador.
A Federação Fluminense adotou o profissionalismo somente no final de 1951 (para a temporada de 1952), quando foi criada a Divisão Estadual de Profissionais. Ela inicialmente teve seis times, um deles na ativa até os dias de hoje: o Barra Mansa, primeiro time profissional do país. Além do Leão do Sul, participaram o Adrianino, de Paulo de Frontin; o Central, de Barra do Piraí; o Coroados, de Valença; o Esperança, de Nova Iguaçu; e o Fonseca, de Niterói, que viria a ser bicampeão fluminense na virada da década.
O problema é que nos primeiros anos, o Campeonato Fluminense era disputado apenas por times do sul do estado (o que incluía a atual Baixada Fluminense). Mas os times de Campos e Niterói sempre pressionavam ou desistiam. A própria Federação Fluminense viria a reconhecer os campeonatos organizados pela Divisão Profissional apenas em 1962.
A partir de 1959, a CBD passou a organizar a primeira competição totalmente nacional, a Taça Brasil. Com isso, o Rio de Janeiro passou a ter dois representantes no torneio: o antigo estado, jogando pela chamada Zona Leste e a capital (e depois, Estado da Guanabara), entrando nas semifinais, junto com o campeão paulista. Apesar de ser um time de Niterói, o Canto do Rio poderia disputar a Taça Brasil como time da cidade do Rio de Janeiro (seja como capital federal ou Estado da Guanabara).
Isso, é claro, até ser expulso de vez da Federação Carioca em 1964.
No ano seguinte à expulsão do Cantusca, o estado da Guanabara criou uma competição à parte do Campeonato Carioca para indicar o seu representante à Taça Brasil. É a nossa velha conhecida Taça Guanabara. Ela foi disputada como torneio independente até 1971.
Em 1975, ocorre a fusão entre os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. A fusão dividiu muitas opiniões e divide até hoje. Apesar da fusão geográfica, os estados eram separados no futebol. Porém, no mesmo ano da fusão, o Americano se sagrou campeão fluminense pela última vez. No ano seguinte, a Federação Carioca abre o seu campeonato para três times do interior: os eternos rivais Americano e Goytacaz, e um time que era chamado de Flamengo, era rubro-negro e tinha o mesmo escudo do famoso time da Gávea. Mas que por pressão do Almirante Heleno Nunes, que era ligado ao Vasco, teve que se refundar e se tornou o Volta Redonda Futebol Clube.
E chegamos à época da fusão das duas federações. Em 15 de setembro de 1978 é criada a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, a nossa amada e odiada FERJ. O Campeonato Carioca daquele ano começou 13 dias antes e valeu apenas como uma fase classificatória do primeiro campeonato do novo estado, que seria disputado em fevereiro do ano seguinte. Com isso, o Carioca voltou a ter 12 times, enquanto os times do interior jogaram o Campeonato Fluminense.
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No Carioca, o Flamengo foi campeão, vencendo os dois turnos. Os seis melhores se classificaram para o “campeonato especial” em 1979, sendo eles: o campeão Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, America e São Cristóvão. Já no Campeonato Fluminense, seis times disputaram quatro vagas para o campeonato do novo estado. O Goytacaz foi campeão, e além dele, classificaram-se o Americano, o Volta Redonda e o Fluminense de Nova Friburgo, que dois anos depois, se tornaria o Friburguense Atlético Clube. Curiosamente, o Flamengo e os dois times do Bairro Imperial (Vasco e São Cristóvão) eram contra a adesão de clubes do interior, mas tiveram que engolir seco a determinação da CBD.
Campeonato Especial – Regulamento
Em 4 de fevereiro de 1979, iniciava-se uma nova era no futebol do Estado do Rio de Janeiro. O campeonato especial tinha um regulamento bem simples: os 10 times que vieram dos campeonatos de 1978 jogaram em dois turnos independentes, ambos no sistema de pontos corridos. O time que somasse mais pontos seria o campeão do turno e os campeões de cada turno fariam a final. Caso um time vencesse ambos os turnos, seria campeão automaticamente, uma coisa que viria a se repetir ao longo dos anos. Porém, apenas Flamengo e Vasco já chegaram a ser campeões cariocas vencendo os dois turnos, sem necessidade de final.
Campeão, Flamengo inicia escalada nacional
O campeão foi o Flamengo, que venceu os dois turnos, e ainda de forma invicta, com 13 vitórias e 5 empates ao longo de 18 jogos. Era um time que começava a ganhar forma para se tornar o Flamengo que conhecemos até hoje, imortalizado no coração de muitos rubro-negros, e fundamental para formar uma geração inteira de novos torcedores. Mas vamos a uma observação aqui.
O Flamengo sempre foi um time que gozava de certa popularidade, muito por causa do locutor e flamenguista roxo Ary Barroso e do Estado Novo. Porém, surgiram outros times que atravessaram quaisquer pretensões rubro-negras de se tornar um time nacional. Do Expresso da Vitória do Vasco até o Santos de Pelé, passando pelo Botafogo de Garrincha.
Para se ter uma ideia, até o fim dos anos 70, o Flamengo tinha apenas um Torneio Rio-São Paulo, vencido em 1961, e um vice-campeonato da Taça Brasil, em 64, para o Santos. Mas a história começou a mudar em 1977, quando Walter Clark, superintendente da TV Globo em seus 12 primeiros anos de vida, e um dos pais do “padrão Globo de qualidade”, deixou a Vênus Platinada para fazer parte da diretoria do Flamengo. Nesta época, parte do time era base do esquadrão que fez parte da Era de Ouro e a sua estrela era Zico, o eterno Galinho de Quintino.
A partir de 1978, o Flamengo iniciou uma escalada que levou a Nação Rubro – Negra ao topo do mundo em 1981. E o Carioca de 1979 foi parte desta história.
Zico, o artilheiro
Se considerar os dois campeonatos, Zico marcou 60 gols, sendo 26 deles apenas no Campeonato Especial. Para um torneio de 10 times e dois turnos, é um número bem impressionante, tanto naquela época, quanto para os dias atuais.
Em seguida, com 18 gols, ficou Luizinho Lemos, do Botafogo. Ele, que anos mais tarde viria a ser treinador e morreu em 2019, após sofrer um infarto quando treinava o America durante um jogo contra o Nova Cidade, pela Série B1, a segunda divisão carioca na época. E em terceiro, com 13 gols, Nunes, do Fluminense.
O mesmo Nunes viria a ser herói rubro-negro, marcando os três gols na vitória sobre o poderoso Liverpool, da Inglaterra, se sagrando campeão mundial de clubes dois anos depois.
Americano, a surpresa
Uma das grandes surpresas foi o Americano, quinto colocado no geral.
Nesta época, o futebol de Campos começou a mostrar o que viria a aprontar nos anos seguintes. Só no Campeonato Especial, conseguiu arrancar um pontinho do Fluminense de Fumanchu (lenda do Santa Cruz), do Vasco e do Botafogo.
Um belo começo pro Fantasma, que só viria a ser rebaixado em 2012 e que em 2022disputa a Série A2 do Campeonato Carioca, após uma rápida passagem pela elite em 2018.
Fluminense de Friburgo, o saco de pancadas
Sem dúvidas, o grande saco de pancadas do Campeonato Especial foi o Fluminense de Friburgo.
No primeiro turno, até foi o segundo melhor do interior, ficando em sexto. Mas no segundo turno, foi lanterna, somando apenas um pontinho contra o São Cristóvão.
Contra os grandes, foi um verdadeiro saco de pancadas, levando goleada de todos eles. Até do xará tricolor.
A maior goleada do Especial envolveu justamente o Flu de Friburgo: um 7 a 0 contra o Botafogo, pela segunda rodada. Logo após, um 7 a 1 do Flamengo contra o Goytacaz. A dupla Fla-Flu aplicou três 6 a 1. Os tricolores contra o América, e os rubro-negros, contra o Americano e o São Cristóvão.
Campeonato Carioca de 1979
O primeiro campeonato do novo estado do Rio de Janeiro teve início em 5 de maio de 1979 e tinha um regulamento bem típico daquela época. Ou seja, bem bagunçado.
Na Taça Guanabara, os 18 times (sendo que seriam 20, mas os finalistas da Divisão de Acesso de 1978 – Friburgo e Costeira, de Niterói – não subiram) jogaram em turno único. Quem somasse mais pontos seria campeão.
Os dez primeiros jogavam no grupo dos vencedores, ou o grupo A, e os oito últimos foram para o grupo dos perdedores, ou grupo B, no segundo turno. Ao final do segundo turno, oito times jogariam a fase final, sendo eles: o campeão da Taça Guanabara, o campeão do segundo turno no grupo A, os dois primeiros do grupo B e os quatro melhores do grupo A, excluindo os vencedores de turno. Caso o campeão do grupo A no segundo turno fosse campeão da Taça Guanabara, os cinco melhores iriam pra fase final, o que de fato aconteceu.
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Na fase final, os campeões de cada turno teriam um ponto de vantagem e quem somasse mais pontos se sagraria campeão. Todos os jogos na segunda e terceira fases foram em turno único. Como o Flamengo levou os dois turnos anteriores, levou dois pontos de bônus.
Assim como no campeonato especial, o artilheiro do campeonato “pra valer” foi Zico, que anotou 34 gols com a camisa do Flamengo. Em segundo, com 28 gols, um dos grandes ídolos da história do Vasco, o maior artilheiro da história do Campeonato Brasileiro, com 190 gols.
Com todo o perdão dos trocadilhos, Roberto Dinamite “dinamitava” as redes adversárias. Ele seria uma das peças fundamentais para a campanha no Brasileirão daquele ano, chegando à final, perdendo pro Internacional de Falcão.
O saco de pancadas
Considerando as duas fases, o saco de pancadas foi a Associação Desportiva Niterói. O time da Cidade Sorriso somou apenas 10 pontos. Foi vice-lanterna na Taça Guanabara com 8 pontos e no segundo turno, somou apenas dois pontos no grupo dos perdedores (ou grupo B. Foram 2 vitórias, 6 empates e 16 derrotas.
A ADN foi o último time da antiga capital do Estado do Rio a jogar a elite do campeonato carioca. Hoje a cidade possui dois representantes na quinta divisão: o Canto do Rio e o Bela Vista, mas ambos jogam em Itaboraí.
Em compensação, a maior goleada do Carioca de 79 foi aplicada pelo Vasco, na fase final: 7 a 0 contra a Portuguesa da Ilha, no dia 20 de outubro, com dois gols de Guina e dois de Roberto Dinamite. Nesta época, o Vasco tinha no seu gol Emerson Leão – que, curiosamente, nunca foi treinador do Cruzmaltino.
O pós-campeonato
Nesta época, o calendário era muito, mas muito bagunçado. E no Ano Internacional da Criança não foi diferente. Em geral, logo depois dos estaduais, vinha o Campeonato Brasileiro, salvo algumas exceções durante os anos 80 e 90, quando acontecia o contrário.
Em 1979, o maior campeonato brasileiro em número de clubes até o ano 2000 contou com 94 times, sendo que 80 disputaram a primeira fase, 12 na segunda, e nas oitavas-de-final, os finalistas de 1978, Guarani e Palmeiras. Dois times entraram na primeira fase: Campo Grande, 11º colocado, e o America, nono. Ambos ficaram em segundo lugar em seus respectivos grupos; o Galo da Zona Oeste esteve no grupo D, o mesmo do América Mineiro, e o Mecão esteve no mesmo grupo do futuro campeão Internacional e de seu arquiinimigo Grêmio, o grupo G.
Na segunda fase, tivemos as entradas dos quatro grandes da capital e dos arquirrivais de Campos, Americano e Goytacaz. Eram 56 times divididos em sete grupos de oito, dos quais os dois primeiros de cada chave disputaram a terceira fase, se juntando aos finalistas de 1978. Dos oito times que jogaram, apenas Vasco e Flamengo passaram para a terceira fase.
Na terceira fase, eram quatro chaves de quatro times, dos quais apenas o campeão de cada chave ia para a semifinal. O Flamengo ficou no grupo Q e ficou em segundo, atrás do Palmeiras. O Vasco foi pro grupo S e se classificou para pegar o Coritiba nas semifinais. Nesta terceira fase, houve uma polêmica envolvendo o Atlético-MG. Resumindo: na terceira fase, os times jogariam uma partida como mandante. O Galo já havia jogado o clássico contra o Cruzeiro no Mineirão, que era campo neutro. Depois do clássico, jogaria contra Goiás e Inter, sendo que o jogo contra o Colorado seria em Porto Alegre. O Atlético queria mandar o jogo contra o Esmeraldino em BH, usando a alegação do campo neutro, mas o jogo foi marcado para Goiânia. O Galo desistiu e perdeu por WO.
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O Vasco foi à semifinal contra o Coritiba. Na ida, em Curitiba, empate em 1 a 1. Na volta, no Maracanã, vitória vascaína por 2 a 1. Na final, o Inter pulverizou qualquer chance do bicampeonato, vencendo o Vasco por 2 a 0, com dois gols de Chico Spina, diante de 58655 presentes. Na volta, mais uma vitória colorada, 2 a 1, com gols de Jair e Falcão pro Inter e Wilsinho, pro Vasco. Mesmo com o vice – campeonato, o Cruzmaltino se classificou para a Libertadores de 1980.
Já as campanhas dos demais times cariocas foram as seguintes: o Flamengo foi o 12º, o America foi 23º, o Campo Grande, 27º, Fluminense 52º, Botafogo, 53º, Americano, 57º e Goytacaz, 58º. Este foi o último Campeonato Brasileiro “de elite” disputado pela dupla de Campos. A partir de 1980, com a divisão do Campeonato Nacional, os times campistas passaram a aparecer com mais frequência na Taça de Prata, equivalente à Série B.
A maior goleada do Brasileiro foi aplicada por um time carioca: 6 a 0 do Fluminense sobre o Maranhão. Curiosamente, em 2000, os dois times se encontraram de novo pela Copa do Brasil e o resultado foi 6 a 0 de novo.
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