Por Juliano Galisi
Em abril de 2020, o Botafogo registrou três títulos de caráter internacional em seu site, anunciando ainda que recorreria à FIFA pela oficialização dos torneios. Nelson Mufarrej, então presidente do clube carioca, afirmou via assessoria de imprensa ao GloboEsporte que havia um projeto de “buscar o ‘justo reconhecimento em âmbito internacional’ [das conquistas]”. Queria-se, portanto, que as taças fossem homologadas no mesmo patamar daquelas que a entidade máxima do futebol estabelece como troféus internacionais. Na prática – e adaptando a situação para os termos comumente adotados no debate esportivo brasileiro: o Botafogo queria ser reconhecido como campeão mundial.
Tratavam-se de três títulos conquistados na Venezuela durante a década de 1960: a Copa Círculo de Periódicos Deportivos, em 1967; o Troféo Julio Bustamante e Oldemario Ramos, em 1968; e o Torneo Triangular de Caracas em 1970. Todos foram disputados com três participantes e em caráter amistoso. Além do Alvinegro carioca, Cruzeiro e Bangu consagraram-se campeões da competição em outras edições – realizadas, vale lembrar, com múltiplos nomes. Vasco e Grêmio também já chegaram a participar do triangular, mas não ergueram taças.
Fato é que o torneio não ocupa posição relevante na memória coletiva de nenhum dos clubes citados. Faz parte apenas de um momento específico do futebol, em que convites para jogos no exterior e excursões pelo mundo eram os meios predominantes para a captação de recursos financeiros. Aliás, menti ao dizer que nenhum dos times citados lembra dos torneios venezuelanos com apreço – há até hoje, afinal, gente por aí dizendo que o Bangu é campeão mundial. Botafogo e o alvirrubro, convenhamos, estão em prateleiras diferentes na história do futebol brasileiro. Por que, então, os dirigentes alvinegros surgiram com essa história?
É bem provável que tenha sido uma ofensiva contra um crônico (e gravíssimo) problema que assolará o Fogão pelos próximos anos. Cresce, nesse momento, uma geração de jovens que deixou de observar na Estrela Solitária um clube vitorioso e digno de sua paixão – não é para menos, sejamos sinceros. A questão é: a torcida alvinegra envelhece em ritmo preocupante, sem renovação significativa no estrato mais jovem. No longo prazo, isso pode significar um verdadeiro apequenamento do clube.
Urge comunicar aos mais jovens que nem tudo é momento presente e apresentar a belíssima história do Glorioso aos que ainda não tiveram a oportunidade de vivenciá-la no seu devido patamar. Motivada por essas questões, a diretoria foi em frente com esse megalomaníaco projeto de reconhecimento dos amistosos como campeonato mundial. Será mesmo que é o melhor caminho?
Definitivamente, não. Pelo simples motivo de que nenhum desses títulos – nem mesmo o de 1967, quando o Fogão bateu Barcelona e Peñarol – superam a conquista do Troféu Teresa Herrera de 1996, quando o Botafogo consagrou-se campeão contra a Juventus, campeã meses antes da Liga dos Campeões da UEFA, jogando com uniformes improvisados do Deportivo La Coruña, donos da casa. Uma história épica e alternativa que merece ser relembrada como prova cabal da grandeza desse clube, hoje em crítica dificuldade esportiva e no extracampo.
O que é o Troféu Teresa Herrera?
Teresa Herrera, filantropa espanhola, dá seu nome ao tradicional torneio de pré-temporada europeia sediado em La Coruña desde 1946. O anfitrião, claro, é o Deportivo La Coruña, que varia os critérios de convite de ano em ano. Por ser o campeão brasileiro de 1995, o Botafogo foi convidado para disputar a 50ª edição da competição, que já havia contado com diversos representantes brasileiros em anos anteriores. O próprio Botafogo estava embarcando rumo a sua segunda participação – em 1959, perdeu a final para o Santos de Pelé.
Volta ao mundo
O título nacional do ano anterior, inclusive, garantiu ao alvinegro outros convites para torneios amistosos ao redor do mundo. Foi o caso da Copa Nippon Ham, que colocou o Fogão de frente com o Cerezo Osaka, campeão da Copa do Imperador. A partida foi disputada em 27 de julho de 1996 no Estádio Nagai, uma das sedes da Copa de 2002 que, anos depois, serviria como palco de duas decisões da Copa Suruga Bank, em 2008 e 2018.
Dias depois, o Botafogo estava na Rússia – que viagem, não? – para a disputa do III Torneio Presidente da Rússia. Também venceu o amistoso, com duas vitórias em cima de Auxerre-FRA e Valencia-ESP. A jornada prévia do Botafogo antes de desembarcar em La Coruña parece trivial, mas será decisiva para compreender o fatídico episódio da troca de camisas na final.
Desembarque na Espanha
Depois de literalmente 10.000 km de volta ao mundo, o Botafogo desembarcou no noroeste espanhol para a disputa do Teresa Herrera. Agora, definitivamente, o nível de competitividade iria aumentar. Aquela edição reuniria camisas e elencos pesadíssimos. A começar pelo próprio Deportivo La Coruña, campeão da Copa do Rei de 1995. Ajax, campeão da Liga dos Campeões de 1995, e Juventus, campeã italiana e vencedora da Champions de 1996, também estavam por lá.
Carlos Augusto Montenegro, presidente do Botafogo à época, duvidou que o elenco alvinegro fosse capaz de superar adversários tão poderosos – tanto não acreditou que trucou com os jogadores, prometendo-lhes todo o prêmio em dinheiro da competição para o time campeão. “O Montenegro quando viu que estavam Ajax, La Coruña e Juventus, falou: Se vocês ganharem, a premiação é de vocês, já podem rachar, quero é pagar vocês. No fundo ele não acreditava que iríamos ganhar, mas avisamos que aquele dinheiro seria nosso” – relatou o lateral-direito Wilson Goiano, capitão do elenco na ocasião, em depoimento dado ao jornalista Fabiano Bandeira.
Todas as partidas do Troféu foram disputadas no Estádio Riazor. O chaveamento era o seguinte: pelas semifinais, a Juventus enfrentaria o Ajax, enquanto o La Coruña rivalizaria com o Botafogo.
Disputadas no dia 8 de agosto, a primeira partida teve um placar avassalador: 6 a 0 para a Juve. Um verdadeiro passeio contra um time teoricamente competitivo, o que demonstrava como os italianos não estavam para brincadeira na Espanha. O elenco que dispunham, aliás, não era para menos: Del Piero, Torricelli, Di Livio, Vieri, Amoruso, Zidane… O francês só disputou a semifinal, não entrando em campo na final contra o Botafogo – que chegou na decisão após vencer o La Coruña de virada por 2 a 1, com gols de Bentinho e Túlio Maravilha.
Um pré-jogo surreal
O certame decisivo de 10 de agosto de 1996 pôs frente a frente os alvinegros italiano e brasileiro no campo do Riazor. A partida começou imediatamente após a disputa pelo 3º lugar vencida por 2 a 0 pelo Deportivo La Coruña. As arquibancadas, portanto, estavam cheias de torcedores do time local.
Logo depois de comemorarem a vitória contra o Ajax, os espanhóis presenciaram um desentendimento feroz entre a Juventus e o Botafogo. O motivo da briga? Os dois times, como sabemos, têm uniformes muito parecidos – a camisa do alvinegro carioca é diretamente inspirada pelo manto de Turim, invertendo apenas a ordem das listras pretas e brancas. Não seria possível iniciar o jogo com duas fardas praticamente idênticas: uma das equipes teria que utilizar o uniforme reserva.
O que há de concreto no impasse é o seguinte: a Juventus estava irredutível na utilização de seu uniforme principal e o Botafogo não pôde vestir o jogo de camisas reservas.
São muitas as teorias para explicar o motivo de cada um desses fatos. Algumas fontes declaram, por exemplo, que os italianos hesitaram em utilizar o uniforme reserva por acreditarem dispor do mando de campo devido ao saldo de gols construído na partida anterior. Outras garantem que o motivo da irredutibilidade era mesmo o regulamento da competição, mas por um outro motivo: a ancestralidade da equipe. Por ser mais antigo, o clube italiano supostamente teria o direito de escolher o uniforme a utilizar.
Quanto à impossibilidade do Botafogo de vestir a camisa dois, mais versões ainda. Há os que digam que a delegação carioca sequer levou uniforme reserva para a temporada de amistosos ao redor do mundo. Uma outra teoria, mais recorrente em relação às outras, conta que os uniformes reserva do alvinegro estavam incompletos, pois os jogadores haviam trocado as camisas com os adversários durante a maratona de amistosos. Uma última versão propõe que o Botafogo dispunha dos uniformes secundários, mas o juiz não aprovou o uso deles por ainda achá-los parecidos demais com os da Juve.
É difícil definir quais dessas versões são as mais verossímeis. O que há de concreto, repito, é a irredutibilidade dos italianos e o impasse com o uniforme dos jogadores brasileiros. O atrito entre os dois finalistas, aliás, havia começado antes dessa discussão, com uma solicitação da Juventus negada pelo time brasileiro: os italianos queriam que as substituições da partida fossem ampliadas de 3 para 5 jogadores. O clima do jogo estava quente, a despeito dos agradáveis 23º C daquela tarde em La Coruña.
A (bizarra) solução para o conflito partiu dos donos da casa. “A Juventus estava irredutível, não queria trocar de camisa. O Donato, do La Coruña, sugeriu que jogássemos com a deles. Botamos a camisa do La Coruña primeiro e a do Botafogo por cima na entrada. O Antônio Rodrigues teve uma boa ideia, falou para saudar com a camisa do Botafogo e jogar para a torcida, para ganhar os espanhóis. Quando a torcida do La Coruña viu que estávamos com a camisa deles, o estádio veio abaixo, parecia que estávamos no Caio Martins. Torceram por nós o tempo inteiro, isso nos deu muita força para conquistar aquele título”, relembrou o capitão Wilson Goiano na já citada entrevista de Fabiano Bandeira.
Dentro de campo, um jogo igualmente maluco
Foi vestindo o belíssimo manto do Deportivo La Coruña que o Botafogo protagonizou um dos jogos mais épicos de sua história. A edição de uniformes do Deportivo de 1996, vale destacar, é lembrada como uma das mais bonitas do clube – a bela combinação de azul com branco nesse uniforme, inclusive serviu de inspiração para a Matonense-SP.
No primeiro tempo, Vieri abriu o placar aos 23 minutos para a Juve. No início do segundo tempo, Túlio Maravilha empatou. Próximo aos 30 minutos da etapa final, Nicola Amoruso marcou para colocar os italianos à frente no placar novamente. A reação do Botafogo foi imediata, marcando com França 2 minutos depois. Quatro minutos depois do segundo gol brasileiro, confusão entre Torricelli, craque da Juve, e o botafoguense Otacílio – os dois terminaram expulsos. Com 20 jogadores em campo, o empate em 2 a 2 se sustentou até o fim do tempo regulamentar. Teríamos prorrogação.
Nos primeiros quinze minutos extras, Amoruso marcou seu segundo gol logo aos 3 minutos. Paolo Montero, zagueiro uruguaio da Juventus, foi expulso aos 10 minutos. Mesmo com um jogador a menos, o 3 a 2 se manteve até o fim do primeiro tempo da prorrogação. No segundo tempo extra, o zagueiro italiano restante em campo, Ciro Ferrara, se embolou e marcou contra aos 5 minutos. 3 a 3 a 10 minutos do fim.
Que jogo pegado, não? Pois há como ficar mais tenso. Aos 9 minutos, o meia juventino Raffaele Ametrano foi expulso. Os italianos não se acovardaram e marcaram 1 minuto depois com Amoruso, que completou um hat-trick. Com menos de 5 minutos para o fim, a Juventus vencia por 4 a 3. O Botafogo foi para cima e conseguiu um pênalti a partir de falta cometida pelo lateral Sergio Porrini em cima de Túlio. Ele mesmo foi para a cobrança e, heroicamente, levou a decisão para as penalidades máximas.
Nos pênaltis, uma lavada: os juventinos não acertaram sequer uma cobrança, enquanto o Botafogo, mesmo desperdiçando uma delas com Jefferson, marcou três com Wilson Goiano, Gottardo e Souza – que arrancou um pedaço enorme da grama ao chutar a bola.
Um Mundial para chamar de seu
No começo do texto, discutimos como os dirigentes do Botafogo sabiam que o reconhecimento dos Torneios Triangulares de Caracas de 1967, 1968 e 1970 como títulos mundiais oficiais era uma causa perdida. O registro das conquistas como “Mundiais” no site oficial só serviu como munição para chacotas e, aparentemente, não atingiu o objetivo planejado: conscientizar, através do marketing gerado pela divulgação, os mais jovens do glorioso passado do time.
A estratégia falhou pela tentativa de ostentar títulos que pouco importam até mesmo para os times que ergueram as referidas taças. Se sabem que o pedido de reconhecimento é voto vencido, mas acreditam no potencial de marketing da empreitada, por que não divulgar os detalhes da fantástica conquista do Teresa Herrera de 1996?
O drama botafoguense em La Coruña, mesmo que em um torneio amistoso, deve estar na ponta da língua de qualquer torcedor alvinegro. É um atestado incontestável da grandeza desse clube que, mesmo subestimado pela organização espanhola – que pagou pela participação do Botafogo cinco vezes menos do que para as outras equipes -, foi capaz de desbancar os adversários mais qualificados no mundo àquela altura.
Sem falar da brilhante resposta que o elenco deu à arrogância dos italianos…
Ficha técnica
Sábado, 10 de agosto de 1996
Botafogo 4 x 4 Juventus – Local: Estádio Municipal de Riazor
Troféu Teresa Herrera – Final
Botafogo: Wágner, Wilson Goiano, Wilson Gottardo, Grotto e Jefferson; Souza, Otacílio, Marcelo Alves (Marcos Aurélio) e França (Zé Carlos); Sorato (Mauricinho) e Túlio Maravilha. Técnico: Ricardo Barreto.
Juventus: Peruzzi, Ferrara, Torricelli, Porrini e Montero; Jugovic, Di Livio e Deschamps; Vieri (Boksic), Del Piero (Amoruso) e Padovano (Ametrano). Técnico: Marcello Lippi.
Árbitro: Antonio Jesús López Nieto (ESP).
Gols: Vieri aos 23/1ºT; Túlio aos 6/2ºT, Amoruso aos 30/2ºT e França aos 31/2ºT; Amoruso aos 5/1ºTP; Túlio aos 15/1ºTP, Amoruso aos 12/2ºTP e Túlio aos 15/2ºTP.
Pênaltis: Botafogo 3-0 Juventus (Wilson Goiano, Gottardo e Souza)
Expulsões: Torricelli, Montero e Otacílio
Público: 10.000 (estimado)
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