Mesmo que não houvesse uma pandemia, a Avenida Goiás não teria reunido muitos torcedores do São Caetano em 2021.
Vinte anos antes, o endereço concentrava as festas das torcidas do time de São Caetano do Sul, que empolgava o Brasil e decidia o Campeonato Brasileiro contra Vasco (2000) e Atlético-PR (2001). Agora, os torcedores lamentam mais um rebaixamento no Campeonato Paulista e veem a equipe definhar nas divisões nacionais.
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Nos tempos de jogadores como Adhemar, César, Silvio Luiz e Claudecir, uma torcida bem peculiar fazia a alegria de jornalistas que buscavam boas histórias naquele clube desconhecido: a Bengala Azul, que reunia entusiastas acima dos 60 anos para empurrar o Azulão. Para fazer parte, além da exigência etária, o grupo também listava uma série de demandas de saúde – da dor nas costas ao reumatismo, passando pela dentadura.
Mas os 20 anos passados do auge do São Caetano também custaram caro à Bengala Azul, companheira fiel nos bons e nos maus momentos da caminhada do clube.
Do apoio do prefeito à rivalidade
Oficialmente, a Bengala Azul nasceu em 1998, quando o São Caetano ainda era um time pouco conhecido na Série A-3 do Paulistão – o time foi campeão do torneio naquela edição. Mas o embrião da torcida é anterior.
“A gente – os aposentados, os velhos – vinha sempre ao estádio assistir aos treinos do São Caetano, que vinha surgindo naquela época em 1989. Era uma novidade a AD São Caetano, com prefeito ajudando, aquelas coisas. Em todo jogo, treino, a gente comparecia aqui no campo, um grupinho de aposentados. Nessa convivência com o pessoal todo, o próprio prefeito (Luiz Tortorello) convivia com a gente e falou: ‘Pô, todo mundo tem torcida, por que não fazem uma torcida vocês também?’”, conta Agostinho Folco, fundador da torcida.
De início, os velhinhos não pareciam animados uma organização que fizesse frente a outras torcidas. Mas com o incentivo de Tortorello, a ideia foi levada adiante.
“Aí começaram várias ideias (de nomes): INSS, Pé na Cova, Dentadura… Começou a brincadeira entre o grupo de aposentados que ali se encontrava. Nós temos uma fotografia de um cidadão que vinha com uma bengala azul no campo. Uma bengala de madeira – ele tinha problema na perna e usava essa bengala. E dentro daquela conversa surgiu: ‘Põe aí Bengala, tá todo mundo de bengala’. Surgiu esse nome de Bengala Azul. E esse grupo se juntou a essa ideia, ‘vamos fazer a torcida Bengala Azul’. Fundamos a Bengala Azul.”
O registro veio em 13 de janeiro de 1998, com CNPJ e tudo, para que os integrantes pudessem entrar identificados nos estádios. Nessa época, os adereços alusivos ao grupo começaram a se fazer presentes nos jogos, atraindo a atenção de torcedores do São Caetano e de adversários.
Idade, dores e doenças são exigências iniciais para integrar a Bengala Azul, o que deixa a torcida com um ar de brincadeira. É brincadeira, mas é coisa séria. Fazer parte da Bengala Azul demanda um compromisso que não difere tanto do que é visto em outras organizadas.
Há relação com outras torcidas e até local próprio para cada uma delas. Para quem assiste a jogos pela TV, por exemplo, é fácil localizá-las atrás do gol à direita das imagens feitas no estádio Anacleto Campanella.
“Quando tinha contato com as outras torcidas que já existiam – os Gladiadores, Comando Azul, Torcida Jovem -, a gente sempre estava ao lado deles, mas nunca participava da viagem, dos jogos. O local reservado (no estádio) era diferente do deles, onde ficavam a torcida organizada. Quando a gente ia jogar fora, o presidente do clube cedia a condução para a gente (organizadas). ‘Para Campinas, só posso dar um ônibus.’ Como é que a gente fazia? ‘Dou o ônibus para você, vocês dividem um pouco de cada um.’ A gente não fazia isso. Nós não viajávamos com eles. Pegava uma van, os carros dos torcedores, e acompanhavam. Nos campos que a gente visitava, todo mundo vinha conhecer.”
Mas da mesma fora que há uma boa relação com outras torcidas, há restrições com rivais. No caso, as torcidas de Santo André.
“Aqui, a briga maior que se dá é entre Santo André e São Caetano. Aí a coisa é como se fosse Ponte Preta x Guarani (em Campinas), Botafogo x Comercial (em Ribeirão Preto). Essa rivalidade existe há muito tempo entre São Caetano e Santo André”, conta Agostinho.
“Entre alguns diretores da Fúria (Andreense) e da Dragão (Andreense), a gente tem um contato, mas é um contato não muito aproximado. Conversa ‘bom dia’, ‘boa tarde’, ‘boa noite’, ‘vamos ver o jogo’… Se a gente se infiltrar muito, tiver muito contato com eles, os próprios torcedores daqui… Já teve essa rivalidade: ‘Não vão se aproximar dos caras, senão vocês vão se danar com nós’. Os próprios torcedores nossos. Eles não deixavam a gente se aproximar da torcida do Santo André, da organizada Fúria Andreense, Esquadrão (Andreense). A gente evitava. Acabava de uma vez.”
“Teve uma fotografia em que as torcidas se cumprimentavam. Foi a maior confusão da paróquia. A torcida Sangue Azul, que existia na época, se aproximou deles, começaram a tirar fotografia junto, se cumprimentando. Aí a rivalidade foi maior ainda aqui dentro. Tanto é que essa torcida Sangue Azul foi extinta. Onde tinha um elemento deles, os próprios daqui iam lá, arrancavam a camisa do cara, brigavam com os caras, não deixavam essa torcida se reerguer novamente”, relembra.
Influência política e mudança de sede
Agostinho Folco tem 87 anos, mas parece pelo menos 10 anos mais jovem. Com vitalidade, caminha sem dificuldades pelos arredores do Anacleto Campanella. Recebido por funcionários, adentra o estádio e vai até uma portinha sob as arquibancadas cobertas do local. Ali estavam os pertences da Bengala Azul.
O lugar é amplamente decorado com itens que remetem ao São Caetano e à torcida. Troféus, flâmulas, cartazes, camisas e troféus dividem espaço com inúmeras bengalas azuis dos mais variados materiais. Recortes de jornal nas paredes e em pastas relembram os momentos em que o Azulão fazia frente corajosamente a adversários do Brasil e do exterior.
São dessa época as duas melhores lembranças de seu Agostinho com o São Caetano: a Libertadores de 2002 e o Paulistão de 2004. No primeiro, o time passou por Cobreloa, Cerro Porteño, Alianza Lima, Universidad Católica, Peñarol e América (México), perdendo o título para o Olimpia (Paraguai). No segundo, foi campeão ao vencer o Paulista de Jundiaí nas finais.
Foi em 2004 também, mas no fim do ano, que morreu o grande incentivador do São Caetano: Luiz Tortorello. E o adeus ao patrono acabou dando início a um novo cenário político na cidade, que acabou engolindo o clube.
A partir de 2005, a cidade passou boa parte do tempo administrada por José Auricchio Júnior, prefeito de 2005 a 2013 e de 2017 a 2021. Reeleito em 2020 para um quarto mandato, teve os votos anulados com base na Lei da Ficha Limpa. No começo do ano, Tite Campanella, presidente da Câmara Municipal (e filho do ex-prefeito que dá nome ao estádio da cidade), assumiu como o prefeito interino.
“Depois do falecimento em 2004 do prefeito Tortorello, o clube deu uma decadência que não dá nem para acreditar”, lamenta seu Agostinho. “O incentivo dos vereadores não conjuntava com o AD São Caetano. O Nairo (Ferreira de Souza, presidente do clube) começou a criar não uma rivalidade, mas uma coisa que não combinava com o prefeito. A população começou a se afastar. Os próprios vereadores também começaram. Isso fez com que o clube chegasse onde está hoje. Essa decadência se dá pelo não apoio das autoridades municipais da cidade.”
Foi também a briga política que mudou algumas vezes a sede da Bengala Azul, um xodó de Agostinho Folco. Por um bom tempo, a torcida se viu restrita a abrigar seus pertences sob as arquibancadas, embora a preferência fosse por um espaço bem na entrada do estádio, que chegou a ser desalojado e cedido a outros interesses. O local foi devolvido à torcida em junho de 2021, após nossa visita ao local.
“Essa área, por duas vezes, esse prefeito (Auricchio) tirou nós de lá. Colocou, voltamos. Esse prefeito foi lá e tirou nós fora”, citou seu Agostinho. “Com o prefeito interino, nós solicitamos o recanto novamente da Bengala Azul para voltar às atividades ali.”
Em campo, o São Caetano rapidamente começou a minguar. Na era pós-Tortorello, foi rebaixado do Brasileirão em 2006, da Série B em 2013 e da Série C em 2014. No Paulista, começou a se distanciar dos primeiros colocados em 2008 e acabou rebaixado na edição de 2013. Voltou em 2018, caiu em 2019, voltou em 2020 e caiu de novo em 2021. Em 2014, escapou por dois pontos do rebaixamento na Série A-2 de São Paulo.
“Aí a gente percebeu que, depois que esse homem (Tortorello) faleceu… Aí, meu chapa, o clube não foi mais aquele. Até 2007, a gente ainda tinha esperança: Libertadores, Brasileiro. Ninguém segurava o São Caetano lá em cima. Era sempre o primeiro colocado. A gente chegou a esse ponto. Quando chegaram esses caras na política de São Caetano, a gente tomou esse tombo.”
Uma história de amor
Embora o São Caetano seja um clube relativamente jovem, o estádio Anacleto Campanella é bem mais antigo. Inaugurado em 1955, já foi a casa de outras equipes da cidade, como São Caetano EC, São Bento (nascido de uma fusão do antigo São Caetano com o Comercial, de São Paulo) e Saad. Por isso, andar por ali é conhecer parte da história do futebol sul-caetanense.
No corredor que passa atrás das cabines de TV e da arquibancada coberta, o estádio exibe imagens já bem apagadas de antigos times da cidade. Um deles é o Botafogo, uma equipe amadora de São Caetano do Sul da qual Agostinho fez parte.
“Eu vim para São Caetano com três anos de idade. Estou com 87 anos. Conheço muito bem a parte de futebol amador”, conta o ex-comerciante, nascido em São Paulo, casado e pai de três filhos. Desde sempre, o coração de Agostinho sempre teve espaço para as paixões.
“Eu não era um atleta, mas gostava muito de participar de corrida. Treinava ali na pista do Pacaembu. Quando eu conheci minha esposa, ela já sabia que eu tinha essas atividades. Nunca deixei de estar participando de um jogo, do futebol. Quando eu tomava conta de um clube de futebol na várzea, ela sabia que eu chegava meio tarde. Quando surgiu o AD São Caetano, comecei a participar e ela já me conhecia nisso”, lembra.
“Fiz um acordo com ela. Conversamos: o que tem que fazer, você vê comigo de manhã, a gente faz tudo. Supermercado, tudo. À tarde, eu ficava ali no recanto dos Bengala Azul. Terminava o almoço e ficava ali: ia jogar dominó, tomar sua cervejinha, ver televisão. Ficava ali até 20h, 21h, 22h. Enquanto estava jogando dominó ou carteado, eu ficava com o pessoal da minha área ali. Ia para casa normalmente. Essa convivência com minha esposa e com meus filhos sempre foi assim. Nunca tive desavença nenhuma com minha senhora.”
O futuro da Bengala Azul
Ao longo de mais de 20 anos de história, a Bengala Azul viu crescer o número de interessados e apaixonados. Na contramão, a participação do público entrou em queda.
Pode parecer estranho, mas a conta bate. Na virada do século, segundo Agostinho, a torcida tinha “uns 300 e poucos” integrantes. Hoje, segundo ele, a lista de associados conta com mais de 800. Mas nem todos de São Caetano do Sul, nem todos torcedores de fato. Muitos, em pouco tempo, foram se distanciando.
“Os torcedores se aproximavam, faziam cadastro, mas só com interesse de pegar ingresso. Agora, para assistir o jogo, a gente falava: ‘Pega o ingresso, mas só assiste o jogo onde fica a torcida’. Desses torcedores que vinham pra cá, a gente começou a cortar os ingressos. Ou você vai ficar com a gente, ou não fica com a gente. Não dava o ingresso a ninguém que não fosse oficialmente torcedor com a carteirinha de sócio da Bengala Azul. Apresentava a carteirinha ao diretor, eles pegavam os ingressos e vinham aqui na cobertura”, descreve o torcedor, citando um setor do estádio distante do dedicado à organizada.
“Das pastas que a gente tem dos associados, eu posso mostrar o que foi retirado de sócio da torcida Bengala Azul. Você não faz ideia. Um pacote desse tamanho. Pessoas que faleceram e pessoas que não tinha mais interesse nenhum. Associados de São Paulo, Santo André, São Bernardo (do Campo). Tinha associado de vários lugares. Até da Argentina, de quando a gente jogava na época, tinha gente que só fez filiação para dizer que é sócio da torcida”, lembra.
Com a queda livre do São Caetano em campo e o menor interesse dos associados na Bengala Azul, Agostinho Folco admite que a torcida quase chegou ao fim. Entre 2019 e 2020, ele cogitou dar baixa no CNPJ do grupo, encerrando – ao menos no papel – o grupo.
Felizmente, foi demovido da ideia. “Eu estava pensando em tirar o registro do CNPJ, mas o incentivo dos meus colegas (evitou). ‘Não faça isso, que você vai desmoralizar você e vai desmoralizar a própria torcida organizada’. A gente ficou e continuou”, descreve ele.
“Não parece, mas o registro afeta muito a organização e as responsabilidades. Eu tirava o CNPJ e ficava só com essa meia dúzia de torcedores que eu falei.”
Aos poucos, a morte de integrantes minguou o número de apaixonados. Com a má fase do clube, a tarefe de atrair novos participantes se tornou mais árdua para a Bengala Azul.
“Quem trabalha comigo hoje, eu posso contar com cinco ou seis pessoas. Naquela época, eu contava com todos. Todo mundo vinha aqui querer saber, ajudar, o que precisa, o que não precisa, o que a gente precisa fazer. Hoje, além de eles terem falecido… Eu fico pensando nos colegas. A gente precisava deles, colaboravam com o máximo possível. Ajudavam como você pode imaginar. O que eram mais chegados a mim, que mais colaboravam, infelizmente foram embora”, lamenta.
Seu Agostinho se emociona quando cita os colegas. Mas deixa clara a intenção de manter a Bengala Azul viva para as gerações seguintes.
“Esses três, quatro, cinco colegas que eu tenho, pode ser que eles continuem. Mas enquanto eu tiver essa possibilidade de trabalhar…” diz. “Enquanto eu estiver com saúde, enquanto eu tiver força e coragem, vou fazer.”
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