Um craque que combinava técnica com posições políticas bem definidas. Assim foi Sócrates, personagem único do futebol brasileiro. Ícone da Seleção nos anos 1980, o Doutor consagrou-se nos títulos que teve defendendo o alvinegro de Parque São Jorge nesse período. Era a chamada Democracia Corintiana, um período de conquistas para o Mosqueteiro. “Mas ele tornou-se mito do clube somente depois”, aponta o escritor Tom Cardoso. Investigador da trajetória do meia, o jornalista vasculhou acervos e entrevistou diversos contemporâneos do ídolo corintiano. O resultado é a biografia Sócrates que será lançada em novembro pela editora Objetiva. Última Divisão conversou com Cardoso sobre a vida dentro e fora de campo do ídolo.
Última Divisão: Como surgiu a ideia de escrever a biografia do Sócrates?
Tom Cardoso: Eu sou corintiano e isso foi um fator motivador. Mas o Sócrates é um jogador que transcende a paixão clubística. Ele é querido pelos torcedores de todos os clubes até por causa das posições políticas dele. Eu tenho 41 anos e era garoto na época da Democracia Corintiana. Já tinha publicado três livros sendo que um é sobre um personagem ligado ao futebol (O Marechal da Vitória, biografia do empresário Paulo Machado de Carvalho pela editora Girafa). Nisso, eu pensei em fazer uma obra literária sobre o Sócrates na época em que ele estava doente. Logo que eu mandei os livros que eu tinha escrito. Acabei trocando alguns emails com a Katia (Bagnarelli, viúva do ex-jogador). Depois da morte dele, a Katia me disse que ele tinha lido e gostado muito. Então, eu comecei a fazer o projeto. Não tive apoio da família e do Raí. Foram três anos fazendo esse trabalho no qual entrevistei mais de 100 pessoas durante a pesquisa.
LANÇAMENTO DO LIVRO
“Sócrates”, de Tom Cardoso (Editora Objetiva)
Data: 8 de novembro de 2014 (sábado)
Local: Blooks Livraria, no Shopping Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569 – São Paulo-SP)
Horário: das 17h às 22h (de Brasília)
UD: O Sócrates iniciou a carreira profissional no Botafogo de Ribeirão. O livro dedica muitos capítulos sobre a passagem dele na Pantera?
TC: Claro. O Sócrates sempre foi um jogador idealista que tinha um papel importante fora de campo. Isso era algo diferente e original entre os demais atletas. Esse lado começou a ser moldado no Botafogo. Quando ele era juvenil, o pai dele fez com que ele conciliasse os estudos com a carreira. Ainda nessa época, ele ficou dono de parte do passe dele. Isso era algo raro. Desde a época do Botafogo, o Sócrates passou ter uma postura independente porque ele negociou os contratos desde muito cedo.
UD: O apresentador Milton Neves comenta que o São Paulo teve interesse no Sócrates antes do Corinthians. Mas parece que o clube alvinegro atravessou o Tricolor. É verdade?
TC: Na minha apuração, eu descobri que essa história é verdadeira. O São Paulo teve interesse muito tempo antes. Mas o pai não deixava ele sair de Ribeirão Preto antes de se formar. O Antonio Nunes Galvão (ex-presidente do São Paulo) tentou comprar ele durante muito tempo. Nisso, o Corinthians soube que ele ia sair do Botafogo logo depois da formatura. O Vicente Matheus fingiu que tinha interesse em comprar o Chicão do São Paulo. Agora, o Matheus era um cara esperto. Ele pegou um carro e foi pra Ribeirão Preto comprar o Sócrates. Enrolou e enganou a diretoria do clube adversário. O livro conta esse episódio em detalhes.
UD: Ele foi um dos protagonistas da Democracia Corintiana. Como o livro aborda isso?
TC: Eu não diria que eu desmistifico, mas lendo o livro você percebe que o movimento não teve só acertos. Em alguns momentos não foi algo tão democrático. O Leão dizia que era um movimento de quatro pessoas: Sócrates, Wladimir, Casagrande e Adilson Monteiro Alves. De fato, todo mundo tinha poder de voto. Mas determinadas votações já tinha sido decididas. Como na contratação do Leão que foi algo votado, mas já tinha sido acertado. O Zenon conta essa história que a votação não foi feita direito. Acredito que o mérito da Democracia foi ter tido esse papel comportamental de antecipar as Diretas, o frescor democrático. Foi uma mudança no futebol que só deu certo por causa daquele bicampeonato. Mas acabou quando o Sócrates saiu. Depois, quem assumiu o Corinthians foi um pessoal ligado a Ditadura Militar, ao Romeu Tuma.
Mas tiveram atritos mesmo durante a Democracia. O Sócrates chegou a beber cerveja na sala de preparação física do clube. Ele não considerava isso um exagero. Dizia que a cerveja tinha um poder de hidratação. Chegaram a realizar um comício do PT (Partido dos Trabalhadores) dentro do Parque São Jorge. Pro pessoal conservador do Corinthians, isso era a balbúrdia em pessoa.
UD: Esse movimento teve alguns desafetos como os ex-goleiros Émerson Leão e Rafael Cammarota. Você chegou a conversar com eles?
TC: O Leão deu um depoimento rápido dizendo que nunca existiu Democracia. Não cheguei a ouvir o Rafael. Foi o que eu te disse: aconteceu um racha entre duas turmas, uma liderada pelo Sócrates e outra pelo Leão. O curioso é que o Leão também era um cara que negociava bem os seus contratos, tinha espaço no sindicato dos jogadores e exigia pagamentos melhores. Na época, ele ganhava muito bem pra um goleiro que atuava no futebol brasileiro. Agora, a diferença entre eles era grande no lado comportamental. O Sócrates gostava de ter uma vida noturna. Já o Leão era um cara que acordava cedo, bem tradicional. Os dois também tinham preferências ideológicas grandes.
UD: Na sua opinião, qual foi o título mais importante dele no Corinthians?
TC: O bicampeonato 1982-83. Foram conquistas no auge da Democracia Corintiana. Tinha todo aquele contexto político do fim da Ditadura Militar. O curioso é que o Sócrates foi massacrado quando ele chegou no Parque São Jorge. Numa das primeiras entrevistas, ele disse que torcia desde a infância pelo Santos. Isso pegou mal. O Doutor nunca teve o estereótipo de ídolo do Corinthians. Afinal, ele era um jogador lento, cerebral, não dava carrinho. O Sócrates nunca vibrava quando marcava gol, não tinha aquela cara maloqueira do Corinthians. Ele era um jogador lógico, jogava de cabeça erguida. Ele representava um avesso de um estereótipo, entende? A técnica era maior que a raça. Por isso, o título de 79 não foi tão importante quanto o bicampeonato.
UD: O bicampeonato representa uma mudança?
TC: Pode ser. Foi uma mudança dos dois lados: a torcida passou a entende-lo melhor e o Sócrates deixou de ser um ídolo tão blasé. Ele passou a reconhecer que a torcida do Corinthians tinha uma energia muito forte. Mas antes disso ele sofreu muito. Logo quando ele chegou em 1978, o clube estava passando por uma crise forte e viveu momentos complicados antes do bicampeonato. Ele chegou a comprar um Fiat 147 verde e a torcida não entendeu bem isso. O Sócrates não era tão entendido como mito corintiano quando ele jogava. Em 1984, ele saiu e não houveram manifestações da torcida pra que ele ficasse. Tanto que ele não vinga na Itália e o Corinthians não se esforça em tentar trazer ele de volta. O Luciano do Valle acaba tentando trazer ele pra Ponte Preta com um pool de patrocinadores. Mas isso não dá certo e ele acaba acertando com o Flamengo. Faltou uma volta dele, algo que fizesse ele encerrar a carreira no Parque São Jorge.
UD: A passagem dele pela Fiorentina não foi marcante. Como foi isso?
TC: Foi uma série de fatores que culminaram nisso. Ele pegou um dos piores invernos da história da Itália e houve uma crise de ciumeira dos outros jogadores estrangeiros. Principalmente porque ele foi contratado por muita grana, isso incomodou muito. O Sócrates teve diversas dificuldades de adaptação ás normas do clube. Os dirigentes da Fiorentina eram da família Pontello, membros da Democracia Cristã, partido de direita. E ele chegou dando entrevistas dizendo que era socialista (risos), falando com jornais de ideologia comunista.
UD: O Sócrates foi um dos destaques do Brasil na Copa de 1982. Qual importância essa competição teve na carreira dele?
TC: Foi a única vez em que ele foi atleta no sentido pleno da palavra. Na Espanha, o Sócrates conseguiu combinar técnica com preparo físico. Ele tinha prometido ao Telê (Santana) que ia se dedicar. Eles sempre se deram muito bem, existia uma coisa paternal, uma liga entre os dois. Tanto que ele jogou muito bem as partidas da Copa, deixou de fumar e parou de beber durante as refeições. Dizem que o Telê tinha chegado nele e falado: “Larga esse cigarro que eu quero ver você voando”. Nisso, ele ganhou fôlego.
Essa mudança física do Sócrates foi sentida nos jogos. Ele teve uma arrancada maior, conseguiu jogar no campo inteiro. Estava no seu esplendor física e conseguiu imprimir um futebol cadenciado. Além de tudo isso, ele ainda foi o capitão da Seleção nessa competição. Aí você consegue imaginar o quanto o Telê confiava nele.
UD: Fora de campo, o Sócrates foi conhecido por ser um jogador boêmio. Como o livro aborda isso?
TC: Olha, o próprio Sócrates demorou pra reconhecer que era alcoólatra. Ele nunca teve uma postura moralista nisso. Acho que o cigarro acabou prejudicando mais o Sócrates que a bebida. Ele fumava desde adolescência. Ribeirão (Preto) é uma cidade quente e lá sempre existiu uma cultura da molecada beber cerveja. O curioso é que ao mesmo tempo que ele bebia e fumava muito, ele ainda era médico. No livro, eu não trato essa questão do alcoolismo nem de maneira moralista nem pessimista.
UD: O Ruy Castro publicou um livro sobre o Garrincha (Estrela Solitária) que também teve problemas com o álcool. Depois, a própria família acabou tirando o livro de circulação. Você acredita que isso pode te prejudicar em algo?
TC: Não. Não acho que você possa fazer uma comparação entre os dois. O Garrincha bebia cachaça e o Sócrates cerveja. Mas o Magrão sempre disse em entrevistas que gostava de beber. Não imagino que a família queira preservar uma imagem que não é a dele. O Sócrates foi uma pessoa que a vida inteira vendeu a imagem que gostava de cerveja.
UD: Muitos jovens jornalistas tem o desejo de tornar-se biógrafos. Se você pudesse dar um conselho pra eles, qual daria?
TC: A biografia é uma reportagem maior. A pessoa deve pensar num tema e realizar uma pesquisa intensa. Acho que não existe muito segredo, sabe? É uma reportagem mais longa. Lógico que precisa ter cuidado pra não ficar algo chapa-branca.
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