“Futebol não é uma questão de vida ou morte – é muito mais do que isso.” A frase de efeito é creditada a Bill Shankly (1913-1981), técnico do Liverpool entre 1959 e 1974. Pode ser que muita gente leve tal exemplo a sério, colocando o futebol acima da vida ou da morte. Mas um exemplo inesperado mostrou que há coisas mais importantes na vida do que a vitória em um jogo de futebol, mesmo sendo em uma competição de destaque nacional.
O exemplo em questão é o Imagine Futebol Clube, equipe do Tocantins que participou da Copa São Paulo de futebol júnior 2014. Integrante do Grupo Y do torneio, ao lado de Flamengo-SP, Vitória e Juventus, o clube de Palmas foi eliminado na primeira fase com a pior campanha dentre os 104 times da competição: três jogos, três derrotas, um gol marcado e 29 gols sofridos. Mas para o presidente da equipe, Paulo Kramer, os resultados em campo ainda não são prioridade.
O Imagine FC surgiu de um projeto social de Kramer, médico radiologista de formação, para afastar os adolescentes das drogas. Para isso, teve a ideia de investir em um time de futebol para jovens, que deixariam o crack de lado para concentrar suas atenções nos esportes. Assim, criou o clube, que trabalha com basicamente com jogadores de até 20 anos. Entre os profissionais, o time alviverde disputa a segunda divisão do Campeonato Tocantinense desde 2010, sem chegar ao acesso.
“Há quatro anos, eu comecei um projeto social a partir de uma ausência do Estado e do poder constituído para fazer frente aos problemas sociais. A principio, não tinha a ideia de que a coisa cresceria tanto. Nós começamos a tentar fazer nossa parte nesse sentido para tentar minimizar essa epidemia de crack que assola o País inteiro. A gente começou utilizando o futebol porque é a paixão nacional, onde você consegue agregar mais pessoas em menos tempo. A partir desse projeto social, nós participamos de competições, fomos formando equipe, e a coisa começou a tomar corpo. Aí, vi que havia a necessidade de organizar a coisa, para que os resultados fossem melhores”, contou Kramer em entrevista por telefone.
O presidente do clube diz não contar com ajuda pública para tocar seu projeto social. Para a disputa da Copa São Paulo, por exemplo, o dinheiro da viagem da delegação saiu do bolso do próprio Kramer e de empresários interessados em apoiar a equipe. Com um elenco jovem, nascido todo entre 1996 e 1998, o time tocantinense não foi capaz de fazer frente aos três rivais do grupo, mas ao menos deixou Paulo Kramer satisfeito por ter sido capaz de revelar jogadores – para ele, ainda hoje a principal meta da Copa SP.
“A Copa São Paulo foi criada com a prerrogativa de revelar talentos. Essas equipes como o Vitoria não vão lá para revelar jogador – elas vão lá conquistar mais um titulo. Hoje, perdeu-se um pouco o sentido da Copa São Paulo. Os clubes grandes vão para serem campeões, para botar mais um troféu na galeria. Tanto é que o Vitória jogou só com atletas (nascido em) 1994, que é a idade-limite do torneio. Nos fomos com 1996, 1997 e 1998”, disse Kramer, que foi além.
“A diferença de porte físico era monstruosa. O time de Vitória parecia um time americano de basquete. Ainda assim, se você vir imagens do nosso jogo (Imagine 0 x 12 Vitória), o jogo foi parelho até os 30min do primeiro tempo. Tivemos chances de abrir o placar. Dali para frente, começou a se fazer valer o preparo físico, e a gente não conseguiu suportar. Eu levei, sim jogadores novos, que é o que o mercado do futebol quer. O mercado não quer jogadores 1994. Quer 1996, 1997, 1998. Fui com a ideia de revelar”, completou.
Ao que tudo indica, mesmo diante dos placares adversos, a missão de Paulo em SP foi cumprida, já que dois jogadores foram chamados para voltar a Embu-Guaçu (SP) e treinar com um parceiro de sua equipe: o meio-campista Wellington Carlos (nascido em 1997) e o atacante Kaio Barros (1998). Os dois já despertaram o interesse de clubes, embora o dirigente não os identifique.
Confira os principais pontos da entrevista de Paulo Kramer:
No elenco da Copa SP, ex-usuários de drogas que passaram pelo projeto
Não é difícil associar: os jogadores do Imagine FC são oriundos do projeto social de Paulo Kramer para se afastar das drogas – logo, parte do elenco que disputou a Copa São Paulo de 2014 chegou a se envolver com o vício. O presidente confirma, mas não cita quantos ou quais seriam os jogadores, justamente para livrá-los de um estigma futuro em outros clubes.
“Eu me reservei o direito de não citar nomes. São jovens e eu não gostaria de expô-los. Eu levei menino para São Paulo que já estava mexendo com coisa errada, que estava na mão de traficante. Imagine o orgulho de ter conseguido abrir portas para um menino desses. Há muitos casos de resgate, provando que é possível, através do esporte fazer frente”, disse.
Imagine FC teve oferta para vender a vaga
A fragilidade técnica do Imagine FC foi alvo de diversas abordagens antes mesmo da Copa São Paulo de 2014. Classificado por ter sido vice-campeão tocantinense Sub-19 (o Ricanato, campeão do torneio, não poderia ir por ser uma equipe amadora), o clube de Paulo Kramer recebeu até mesmo ofertas de equipes de São Paulo e do Rio de Janeiro para vender sua vaga “por valores significativos”.
Kramer, porém, optou por recusar o dinheiro e disputar o torneio, mesmo ciente de que provavelmente seria presa fácil para os rivais. Para ele, seria importante valorizar os atletas formados pelo projeto social da equipe, dando a eles a oportunidade de disputar o principal torneio das categorias de base no Brasil, mesmo ciente da possibilidade de resultados (muito) adversos.
“Se nós vendêssemos a vaga para empresários de Rio e de São Paulo, colocaríamos por terra isso”, comentou, sem citar por quais clubes ou empresários teria sido procurado. “Preferi manter meus princípios, minhas palavras, mesmo correndo o risco de acontecer o que aconteceu”, acrescentou.
Recuperação, sim – mas com metas em campo
A prioridade de Paulo Kramer à frente do Imagine é afastar os jovens do crack, mas é claro que só isso não basta para ele e para seus jogadores. Em campo, o time quer conquistar resultados, até para manter a motivação elevada. Para isso, com o elenco de seu projeto, Kramer quer chegar à primeira divisão do Campeonato Tocantinense em 2015.
Em 2013, os resultados da equipe não foram dos melhores. O time foi um dos dez inscritos no certame (ao lado de Alvorada, Araguaína, Atlético Cerrado, Escola Paraíso, Inove, Juventude, São José, Sparta e Tocantins de Miracema), mas não conseguiu nem mesmo ir para a segunda fase. No Grupo 1, foram oito jogos, uma vitória (3 a 2 sobre o Alvorada) e sete derrotas, que valeram à equipe o quarto lugar da chave – os três primeiros avançaram.
“Dentro do nosso projeto, vamos subir para a primeira divisão em 2015. Temos toda uma questão de logística. Queremos ter uma torcida própria, que não temos hoje, e ainda utilizamos uma área do município. Primeiro precisamos ter uma estrutura”, disse o dirigente, que quer ainda estender o projeto a outros esportes. “No projeto como um todo, não está previsto só o futebol – na verdade, são todas as modalidades que conseguimos incrementar dentro do projeto, sejam elas individuais ou coletivas.”
Sem reforços, Imagine FC prefere apostar em seu projeto
O futebol do Tocantins poderia ter deixado uma imagem melhor na Copa São Paulo de 2014 se o Imagine FC tivesse se reforçado com jogadores de outras equipes do estado. Isso, porém, não estava nos planos do presidente do clube.
Para Paulo Kramer, mais importante do que buscar gols, pontos ou vitórias na competição, era consolidar a recuperação de seus jogadores. Por isso, substituí-los na hora da competição poderia ser um retrocesso na recuperação dos jovens.
“Uma coisa está atrelada à outra. Ouvi comentários da imprensa dizendo que uma coisa é futebol, outra coisa é projeto social. Gente, não tem como não utilizar essa ferramenta que é o futebol, o esporte como um todo, como ferramenta de socialização”, diz, reforçando a meta de desenvolvimento do time sem se desvencilhar do projeto.
“Pretendo, sim, fazer essa empresa crescer. Quanto mais ela crescer, maior atenção eu vou poder dar resultado. Eu preciso fazer dinheiro. Não tem como fazer projeto social esse não tiver dinheiro”, completou.
Técnico de 20 anos, ex-xerifão John Herbert é destaque
Diante do elenco limitado do time, o Imagine teve um personagem que se destacou na Copa SP: o técnico John Herbert, 20 anos. Ex-zagueiro da equipe que disputou a segunda divisão do Tocantins, Herbert recebeu o convite do presidente e assumiu o time. Com elogios.
“Ele é oriundo do projeto, está comigo desde que começamos o projeto. Ele era atleta das nossas equipes. Dentro de campo, sempre foi um xerifão, o ponto de referência dos jogadores, e se fazia respeitar sem ser agressivo”, ressaltou o presidente.
“Vendo esse dom dele, que ele tinha jeito para a coisa, fiz o convite para ele, de deixar de ser atleta para coordenar algumas equipes menores. Ele pegou gosto pela coisa, é uma coisa natural dele. Ele comanda e se impõe com ideias, não pelo poder. Esta dando muito certo”, comemorou o dirigente.
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