Se o advogado argentino Emiliano Tade não desperdiçasse uma chance sozinho na cara do gol ou se a bola fizesse uma trajetória um pouco diferente no chute na trave do zagueiro Tim Payne, um raro jogador neozelandês profissional que já atuou na Inglaterra, o Auckland City poderia ter eliminado o campeão da Libertadores no Mundial de Clubes e disputado um dos jogos mais surreais da história do esporte contra o Real Madrid.
Talvez fosse uma partida gigante demais para um clube de dez anos de idade, cujo estádio comporta 3.500 pessoas e a maioria do elenco é obrigada a manter um segundo emprego para se sustentar. Superar o mexicano Cruz Azul nos pênaltis, encerrando o Mundial na terceira colocação e sem derrotas no tempo regulamentar, já é uma realização inimaginável para um time que apenas se classificou para o torneio no Marrocos após virar a final da Copa dos Campeões da Oceania aos 43 minutos do segundo tempo, contra o Amicale, de Vanuatu.
Mesmo antes do triunfo final, a façanha dos comandados pelo espanhol Ramon Tribulietx já era considerada um “conto de fadas“. É verdade que no Mundial de 2009 o Auckland já havia vencido o atual campeão africano Mazembe (quando Tribulietx era assistente técnico) e terminado a competição com um surpreendente 5º lugar, mas desta vez a conquista é muito maior…
Não se trata apenas do resultado, é notável também o futebol exibido, com uma postura tática madura e bom toque de bola. Foram inquestionáveis os triunfos contra o Moghreb Tétouan e o ES Sétif, respectivamente os atuais campeões marroquino e africano, no primeiro caso diante de um estádio lotado torcendo contra.
A campanha fez o futebol ganhar uma dimensão poucas vezes experimentada na Nova Zelândia. Prova disso é que o minuto a minuto de Auckland City x San Lorenzo no site do New Zealand Herald, principal jornal do país, atingiu em poucas horas mais de 100 mil visualizações, uma das cinco maiores audiências esportivas da página no ano, superando até mesmo a matéria mais lida em 2014 sobre os All Blacks, a popular seleção neozelandesa de rúgbi.
Desde 2006, quando a Austrália deixou de disputar as competições futebolísticas da Oceania, os dois grandes clubes da liga neozelandesa, o Auckland City (5 vezes) e o Waitakere United (em 2 oportunidades), se revezaram representando o continente no Mundial de Clubes. A única exceção foi a edição de 2010, quando o Hekari United, de Papua-Nova Guiné, foi uma zebra entre as zebras, interrompendo a hegemonia “kiwi” (como são conhecidos os cidadãos da Nova Zelândia).
Somados, até 2013, Auckland e Waitakere tinham 8 derrotas, 2 vitórias, 8 gols pró e 21 gols sofridos em Mundiais. Só os próximos anos dirão se o futebol local realmente pode almejar um futuro promissor ou se o “conto de fadas” de 2014 é um brilhareco, uma glória isolada como algumas outras que o país já alcançou com a bola no pé.
Abaixo, relembramos essas raras vezes em que a distante Nova Zelândia apareceu no mapa futebolístico.
1º Lugar – Invictos na Copa do Mundo de 2010
Apenas uma campanha do futebol neozelandês pode rivalizar em grandiosidade com a do Auckland City atual. Em sua segunda participação na Copa do Mundo, os kiwis, vindos de uma classificação emocionante na repescagem contra o Bahrein, eram os mais naturais candidatos a saco de pancadas do torneio na África do Sul.
Comandados por Ricki Herbert, treinador que permaneceu sete anos no cargo, os All Whites tinham oito jogadores da liga australiana, cinco de clubes ingleses medianos, um do futebol dinamarquês, um do escocês, dois do campeonato americano, quatro de times semiprofissionais da própria Nova Zelândia e outros dois atletas que sequer atuavam por algum clube na época. O maior destaque era o zagueiro Ryan Nelsen, do Blackburn Rovers, que no auge da carreira chegou a atuar pelo Tottenham e Queens Park Rangers.
O nível do time era bem inferior ao dos rivais na primeira fase: a então campeã do mundo Itália, o Paraguai, terceiro colocado das eliminatórias sul-americanas, e a Eslováquia, que liderou um grupo com Eslovênia, República Tcheca e Polônia no qualificatório europeu. Uma tragédia anunciada?
Surpreendentemente, NÃO! O futebol apresentado pelos kiwis foi tão fraco quanto se poderia imaginar, com a pior média de chutes a gol e o maior número de erros de passe entre as 32 seleções do torneio… Mesmo assim, as decepcionantes atuações dos adversários permitiram que o país da Oceania terminasse o Mundial como a única equipe invicta.
Foram três empates em três jogos. Na estreia, 1 a 1 com os eslovacos, que ganhavam graças a um gol impedido e sofreram seu castigo nos acréscimos do segundo tempo, após gol de cabeça do zagueiro Winston Reid. A segunda partida começou de forma inacreditável, quando, aos 7 minutos, Smeltz abriu o placar para os neozelandeses contra a Itália, que só teve forças para empatar em krogerfeedback cobrança de pênalti de Iaquinta ainda na etapa inicial. Por fim, os paraguaios, já classificados, ficaram em um empate sem gols diante dos grandes azarões.
Saldo final: Nova Zelândia 22ª colocada da Copa do Mundo da África do Sul, à frente dos dois finalistas da edição anterior, França e Itália. Na volta para a casa, os jogadores foram aplaudidos em uma simpática carreata pelas ruas da capital Wellington.
2º lugar – Wynton Rufer artilheiro da Champions League
Filho de pai suíço e mãe maori (tribo indígena nativa da Nova Zelândia), Wynton Rufer serviu à seleção neozelandesa por incríveis 17 anos, de 1980 a 1997. Mas foram suas façanhas na Europa que lhe valeram o prêmio de Maior Jogador da Oceania no Século XX, entregue pela confederação local em 2000, quando a Austrália ainda não disputava competições pela Ásia.
Em sua longeva carreira, o atacante defendeu os dois grandes de Zurique (FC Zurich e Grasshopper), além dos alemães Kaiserslautern e Werder Bremen. Pelo último se consagrou, ao lado do holandês Ronald Koeman, como artilheiro da Champions League da temporada 1993/94, com 8 gols em 10 jogos.
Fã de Pelé na juventude, Rufer hoje é treinador da seleção de Papua-Nova Guiné e tem uma fundação com seu nome para incentivar o futebol de base neozelandês. Em anos recentes, foi também membro do Comitê de Futebol da FIFA.
3º lugar – Rúgbi em baixa e futebol orgulho nacional na década de 80
No começo dos anos 80 a reputação da seleção neozelandesa de rúgbi league, os All Blacks, estava em baixa mundialmente e no próprio país. Praticamente imbatível na época (mais ou menos como é também hoje em dia), o time decidiu contrariar toda a opinião pública internacional para enfrentar um adversário à sua altura.
Em 1981, ignorando protestos que chegaram a impedir que algumas partidas fossem realizadas, os Springboks, seleção da África do Sul, no auge do Apartheid, passaram três meses na Nova Zelândia participando de tumultuados jogos amistosos contra os locais. Em 14 confrontos, os kiwis perderam onze. E o pior: passaram a ser renegados por muitos anos pelos próprios compatriotas.
Coincidentemente, no momento de maior rejeição ao esporte número 1 do país, o futebol neozelandês conseguiu chamar a atenção. Estavam sendo jogadas as Eliminatórias para a Copa de 1982 e a seleção nacional pela primeira vez abandonava os calções pretos, adotando o uniforme todo branco que lhe caracterizou como All Whites.
Ao todo, 20 países da Ásia e Oceania se enfrentaram por duas vagas para o Mundial. Em uma trajetória longuíssima, com 14 jogos e duas fases, os neozelandeses mediram forças com as seleções de Austrália, Fiji, Indonésia, Taiwan, Kuwait, China e Arábia Saudita, viajando cerca de 88 mil km de avião.
Após tamanha epopeia, a classificação poderia ter vindo com um jogo de antecedência, mas os kiwis cederam um empate aos kuwaitianos em uma cobrança de escanteio no fim do jogo. Foi necessário golear os sauditas por 5 a 0 e derrotar os chineses em uma partida-extra, disputada em Singapura, para enfim comemorar a classificação à primeira Copa. Enquanto o rúgbi era motivo de vergonha, o futebol comovia a nação e carimbava passaporte para a Espanha.
Muito mais amadores do que hoje em dia, os All Whites pouco ameaçaram seus adversários em solo espanhol. Foram 3 derrotas e 12 gols sofridos, a segunda pior campanha entre os 24 participantes do torneio, superando apenas El Salvador.
Ainda assim, Summer e Woodin se tornaram heróis nacionais por anotarem gols para a Nova Zelândia no revés da estreia, um 5 a 2 contra a Escócia. No segundo jogo, 3 a 0 para a União Soviética. Finalizando a campanha, os kiwis foram derrotados por 4 a 0 pelo Brasil de Telê Santana, aquela seleção que até hoje é lembrada pelo futebol arte, mesmo sem título.
4º Lugar – Estádio lotado
O futebol neozelandês teve apenas três clubes profissionais em toda a sua história. Convidado pela liga australiana, o Football Kingz, de Auckland, apesar desta propaganda sensacional, não conseguiu passar do meio da tabela em cinco participações, entre 1999 e 2003. Já no ano seguinte, o time foi extinto e deu lugar ao New Zealand Knights, que mandava suas partidas na mesma cidade e representou os kiwis na A-League por duas temporadas. Foi uma experiência desoladora: arquibancadas sempre vazias e apenas seis vitórias em 42 jogos oficiais disputados.
Com a dissolução dos Knights, por dois anos os neozelandeses desistiram de tentar rivalizar com as equipes da ilha vizinha, mais desenvolvida futebolisticamente. Essa depressão só acabou em 2007, com a fundação do Welllington Phoenix. Superando um início difícil, segurando a lanterna do torneio em seu ano de estreia, o novo clube lentamente se fortaleceu e hoje é um símbolo nacional. Chegou a ser terceiro colocado da A-League na temporada 2009/10 e comprova a sua popularidade mandando jogos em outras cidades neozelandesas.
No Eden Park, em Auckland, os Phoenix foram apoiados por públicos de 20 mil pessoas duas vezes, em 2011 e 2014. Mas foi em casa, no Westpac Stadium, em Wellington, que conseguiram reunir a maior quantidade de pessoas na história do futebol de clubes local. No dia 7 de março de 2007, 32.797 pessoas lotaram as arquibancadas para vê-los derrotar o Newcastle Jets por 3 a 1.
O relativo sucesso dos Phoenix motiva a A-League a considerar a inclusão de um segundo clube neozelandês em sua liga profissional nos próximos anos. O Auckland City é sério candidato a pleitear essa vaga, embora saiba que, caso se profissionalize e dispute o campeonato australiano, não poderá mais jogar a Copa dos Campeões da Oceania e o Mundial de Clubes.
5º Lugar – Uma sede pé-quente
Em junho de 2015, a Nova Zelândia foi sede da Copa do Mundo Sub-20, que contou com 24 seleções, incluindo o Brasil. E a atmosfera da ilha parece ter ajudado a nossa seleção, que fez ótima campanha, embora tenha perdido a final para a Sérvia na prorrogação. Só que, em 1999, a história foi diferente.
No Mundial Sub-17 daquele ano, também em terras kiwis, os brasileiros se sagraram campeões derrotando a Austrália na final. Apesar disso, a grande revelação daquele torneio foi o astro americano Landon Donovan (na época loiro), eleito o bola de ouro.
Os neozelandeses também abrigaram a Copa do Mundo Feminina Sub-17 de 2008, vencida pela Coreia do Norte e com campanha pífia do Brasil, eliminado na primeira fase. Como organizadores, os kiwis sempre fizeram bonito.
“A Nova Zelândia pode se orgulhar de sempre ter sediado com muito sucesso os eventos da FIFA. O país terá uma grande oportunidade em 2015 recebendo as maiores promessas do futebol mundial e a audiência de vários países”, comentou o presidente Joseph Blatter, em um discurso clichê, porém verdadeiro. É importante saber que o Mundial Sub-20 fará os neozelandeses voltarem a falar de futebol poucos meses depois da “febre” do Auckland City no Mundial.
As cidades de Auckland, Christchurch, Dunedin, Hamilton, New Plymouth, Wellington e Whangarei, a maioria com estádios minúsculos, serão sedes do torneio.
Também tem os vexames…
E só para demonstrar o quanto devem ser valorizados os momentos citados acima, não custa listar uma breve relação de vexames do futebol neozelandês, como as campanhas em três Copas das Confederações (8 derrotas, 1 empate contra o Iraque em 2009 e nenhuma vitória, 2 gols pró e 24 sofridos), as goleadas contra o México na repescagem para a Copa de 2014 e a derrota para a seleção da Nova Caledônia nas semifinais da Copa das Nações da Oceania de 2012 (que terminou com o título do Taiti, o xodó dos brasileiros um ano depois).
(Texto atualizado em 8 de dezembro de 2016)
Comentários