O que fizeram com a Banda Roja?
Foi o que me perguntei no Rio All-Suites em Las Vegas, onde eu estava, entre cigarros e cervejas quentes, naquele funesto dia 26 de junho de 2011. Naquele dia, o meu River Plate deixou momentaneamente as páginas mais brilhantes do futebol — aquelas que falavam de heróis, do jogo bonito, da poesia com a bola nos pés — para ser estampado nas manchetes mais tristes. Estávamos rebaixados a B Nacional Argentina.
Como muitos devem saber, o regulamento do Campeonato Argentino prevê uma média de pontos acumulados para decidir quem vai ser degolado. Isso privou muitos times grandes de jogar a Segundona. Para sentir o gosto do rebaixamento, era necessário que, ao longo de seis campeonatos (lá são dois por ano), um time terminasse nas quatro últimas posições. Caso estivesse entre os dois últimos, o rebaixamento era direto. Já se fosse um dos dois outros piores, disputaria o lugar na elite contra o terceiro e quarto da Divisão de Acesso.
E assim, ao final do Clausura 2011, o River era inacreditavelmente o 17º colocado nessa tabela, o que o obrigou a enfrentar o Belgrano de Córdoba na famigerada Promoción. O resultado todos sabem: 2 a 0 para os azuis na ida e um vergonhoso 1 a 1 na volta, diante de um Monumental de Nuñez repleto de caras desoladas. Saíam as lembranças de Di Stéfano, Angel Labruna, Francescoli, Ortega e entrava Tano Pasman, o velho que amaldiçoava cada jogador millonario, e que se tornou o símbolo maior do que representou aquele time.
Mas o que aconteceu?
Muito bem, a história começa com a eleição presidencial de 2001 no River. O vencedor foi José Maria Aguilar (foto), um médico de 41 anos, o famoso “sangue novo” na política dos clubes, algo que ainda não vi dar muito certo em canto algum. Eles seduzem pela profissionalização, capacidade e modernização, mas o que entregam é sempre decepção. Em grandes escalas. Não sou conservador, nem fã de dirigentes da velha escola, mas, em nome da chamada administração profissional, esses senhores cometem verdadeiras atrocidades. No pasarán! Ao menos, no deberian pasar…
Aguilar herdou um clube vencedor, com um plantel recheado de grandes nomes como Mario Yepes, Martin Demichelis, Leonardo Astrada, Andrés D’Alessandro, Ariel Ortega, Esteban Cambiasso, Chacho Coudet e Fernando Cavenaghi, todos dirigidos por Ramón Díaz, o técnico mais vencedor da história do clube. Ao River, os ídolos antigos faziam declarações de amor, queriam voltar a vestir a Banda Roja. Não era pouca coisa. Podíamos perder campeonatos, mas tínhamos por que sorrir.
Aguilar começou com um discurso de que o River cresceria também como instituição. Fortaleceria outras modalidades, as atividades para o quadro social e melhoraria as instalações. Pois bem, cortemos para 2006, quando tivemos o prazer de receber o time de volei feminino millonario aqui em São Paulo. As meninas jogariam a Salonpas Cup, e conversando com algumas delas, vimos que a conversa do presidente Aguilar era pura cascata. Todas estavam com o salário atrasado – estamos falando de vencimentos na casa US$ 1 mil mensais, não de salários astronômicos. Faltava tudo, só não faltava garra para as moças lideradas por Vanina Domke e Sandra Kobetic, glórias do vôlei feminino argentino – isto é, grandes desconhecidas até lá e que estavam reféns da situação.
Voltando ao futebol, a primeira medida de Aguilar foi não renovar o contrato de Ramón Díaz logo após o título do Clausura 2002. Estava claro que o riojano contrariava alguns interesses do mandatário. Era esperar para ver. Também partiram Ortega, Turco Husaín, Coudet, Cambiasso e El Chapulin Cardetti. Para o lugar de Ramón veio Manuel Pellegrini, hoje treinador do Manchester City. Ganhamos o Clausura 2003, perdemos a Copa Sul-Americana para o CIENCIANO e as coisas não pareciam tão fora da ordem. Tínhamos ainda jovens valores no plantel como Germán Lux, Javier Mascherano, Lucho González, La Gata Fernández, Cavenaghi, Chori Dominguez, todos aliados a experiência de Bichi Fuertes, Astrada, Ameli, Celso Ayala, El Misionero Rojas e o inesquecível Comizzo, aos 41 anos, no gol.
Passou o ano de 2004, Astrada virou técnico, Muñeco Gallardo e Salas voltaram a Nuñez, mas perdemos as semifinais da Copa Libertadores para aquele rival azul e amarelo. Depois ganhamos deles dentro do seu estádio e conquistamos mais um Clausura, mas as coisas não pareciam andar bem. No ano seguinte, nova eliminação nas semis do torneio continental, dessa vez para um fortíssimo e inspirado São Paulo. Foi quando as coisas começaram a sair dos trilhos.
Na metade final de 2005, Astrada saiu e deu lugar a Mostaza Merlo, outro grande camisa 5 millonario. Com ele no comando em 2001, o Racing acabara com a sua seca de 34 anos (foto). Ele tinha sorte, e nós precisávamos dela. O triste é que um pacotão de reforços duvidosos fora contratado e que o estilo de jogo do treinador não agradaria os medalhões do plantel, como o próprio Gallardo, hoje nosso técnico. Mostaza saiu, um certo Radamel Falcao Garcia explodiu, mas logo se lesionou. Aquele time tinha muitos dos piores jogadores que vi atuar no River: Oberman, Loeschbor, Patiño, Vega… Enfim, um desastre.
Em 2006, eliminamos o Corinthians da Copa Libertadores para logo perder para o tradicional e copero Libertad nas quartas. O técnico na ocasião era Daniel Passarella, que será o personagem central do fim dessa história. Antes de pular para 2008, vale lembrar que, em 2007, o River foi eliminado na primeira fase da Libertadores, pela primeira vez em sua história. E perdendo para o CARACAS em casa, diga-se de passagem.
No ano de 2008, tivemos um novo treinador, Diego Pablo Simeone – ele mesmo, que você e o Galvão Bueno adoravam xingar quando jogavam Brasil e Argentina. Passarella tinha virado história (calma, ele ainda vai voltar aqui), mas com a chegada de Cholo, veio o título do Apertura 2008 e também a eliminação vergonhosa da Libertadores para o San Lorenzo, que, com Ramón Diaz e D’Alessandro no plantel, estava perdendo por 2 a 0 e conseguiu o empate, mesmo com dois homens a menos. Como tinha vencido o primeiro encontro por 2 a 1 no Nuevo Gasómetro, ficou com a vaga.
Eu estava presente no Monumental naquele jogo. Fui a pé até o bairro da Recoleta sem entender o que aconteceu. Por que Ortega ficou no banco? Por quê? Mas os vexames não parariam por aí. No Clausura 2008, o Club Atletico River Plate terminaria na última colocação. Do céu ao inferno em dois atos e um interlúdio macabro. Simeone pediu as contas contrariando sua ex-mulher, a milf e fanática millonaria Carolina Baldini (foto), e foi-se embora. Seus filhos até hoje jogam na instituição.
No fim de 2009, os anos de Aguilar no poder se encerrariam, com muitas suspeitas de enriquecimento, a certeza da subserviência à barra brava e o enfraquecimento do nome do clube. A instituição não tinha crescido como ele havia dito. O futebol de base até seguiu prosperando, mas o vôlei, o basquete e até o xadrez perderam e muito. O vexame tem caminho único e só se sai dele renascendo. Com uma torcida gigante, apaixonada e que comparecia aos jogos, não seria difícil sair dessa.
Nesse sentido, a eleição de Daniel Passarella no fim daquele ano motivou e energizou os hinchas. Ainda que o Kaiser tenha declarado que, quando criança, torcia pra “eles” e que alguns anos depois, já como técnico, teria negociado para assumir o time de lá, a esperança era grande. Eu mesmo estive com Passarella em 2005, quando ele assumiu o Corinthians, e me encantei com a sua conversa. Ser presidente do River era seu sonho. Naquela época, seu auxiliar técnico era Alejandro Sabella (foto).
Pela matemática, o time precisaria fazer bons campeonatos (pelo menos passar dos 30 pontos) para ir respirando na parte de baixo do promedio. Mas uma sucessão de erros, má gestão e péssimas contratações a peso de ouro (a pior foi a de WALTER PANIAGUA), jogou El Millo no terrível descenso.
Em 2009, foi contratado Ogro Fabbiani, torcedor declarado do time, um personagem interessante, mas que não deu certo. O técnico Néstor Gorosito (o mesmo que dirigiu o Tigre no fatídico jogo que não terminou, contra o São Paulo, em 2012) não mostrou porque havia sido contratado. Foi um festival de nonas colocações, atuações sombrias e a coisa não melhorava. Astrada voltou a ser técnico, mas não resolveu.
Em 2010, quando parecia a melhor hora para trazer Ramón Diaz de volta, Passarella apostou no pedante Angel Cappa (foto), ex-auxiliar de Cesar Menotti. O River jogou bola, ficou em quarto no seu primeiro campeonato, mas depois não melhoraria seu desempenho. Cappa foi demitido e Passarella buscou uma solução caseira. Seu amigo J.J. Lopez, ex-volante, adepto das mesmas práticas militares que seduziam o Kaiser nos anos 90 (leia-se não a brincos e cabelos compridos) assumiu o cargo. O bom futebol também não entrou em cena, a bem dizer.
Em 2011, tendo que fazer um excelente campeonato para fugir dos postos mais baixos da tábua de rebaixento, a coisa começou bem. Até a 10ª rodada, o River aparecia como postulante ao título, mas a coisa logo começou a degringolar. O até então intransponível goleiro Carrizo começou a falhar, os terríveis Adalberto Roman e Alexis Ferrero falhavam seguidamente. Os jovens Lamela, Roberto Pereyra e Rogelio Funes Mori não tinham muita culpa.
Enfim, ao final das 19 rodadas, o River Plate terminou em nono lugar e não escapou da Promoción. Caímos. E tivemos que ouvir do presidente Passarella que, para o River, servia mais jogar a B Nacional, e que o campeonato econômico havia sido ganho pelos de Nuñez. ACOBOU A PAZ (sic) definitivamente.
Como renascemos?
A paixão do torcedor nunca morre, por isso não vejo sentido nessas campanhas publicitárias que os times fazem – “eu nunca vou te abandonar”, “o sentimento não pode parar”, entre outras. Os publicitários conseguem vender tais ideias porque nem eles e nem os presidentes dos clubes costumam entender muito de futebol.
Enfim. O River Plate jogou a B Nacional. A ameaça era mais forte que a execução. Para a Segundona, vieram, pela paixão que sentiam pelo clube, Chori Dominguez (saiu do Valencia direto para a Série B Argentina), Fernando Cavenaghi e Lobo Ledesma, além de Carlos Sánchez, Martin Aguirre e o novo talento Lucas Ocampos. No banco de reservas, o comando era de Matias Almeyda, el Pelado, volante que aliava técnica com uma saúde descomunal para desarmar e deixar jogadores com medo.
Almeyda, de quem sou muito fã, havia, alguns anos antes, regressado ao futebol profissional para ajudar o River. Nunca esqueceremos. Como também a contratação de David Trezeguet (foto) nunca sairá da memória. Um cara que ganhou tudo que podia e mais um pouco, estava ali jogando no clube do coração. Sim, Trezeguet começou nas categorias de base do Platense, clube que fica bem próximo ao River, passou sua infância na Argentina e viu que era El Más Grande. Realizou seu sonho e o nosso. Ganhamos a B Nacional em 2012, e lá estava eu outra vez em Las Vegas.
(O leitor deve estar imaginando que sou um playboy reaça que vive indo para o exterior ao invés de apoiar o clube nas arquibancadas. Errado. Todas as vezes em que estive na Sin City foi a trabalho — sou jornalista especializado em poker. ;) )
Na nossa volta a primeira divisão, Dominguez e Cavenaghi foram limados do time, em mais um episódio lamentável da gestão Passarella. Uns diziam que era retaliação de Trezeguet, outros que os empresários deles não “compunham” com a presidência. No fim, pareceu que Almeyda concordou com a saida dos dois para se manter no cargo, já que muitos desejavam que fosse contratado um treinador mais experiente. Algo injusto com El Pelado. Para mim, ele só poderia sair se viesse outro cara com o apelido de El Pelado, o sr. Ramón Angel Díaz. O que acabou acontecendo depois de alguns resultados fracos na Primeira Divisão.
Com Ramón, o time ficou na segunda colocação do Torneo Final em 2013. O futebol era outro, a aura de vencedor do time havia voltado, os jogadores pareciam ter alegria (e não medo) de vestir a Banda Roja, mas ainda assim amargamos um 17º lugar no Torneo Inicial de 2013. Nada que tirasse o nosso foco.
Com a troca de comando na presidência, assumia agora Rodolfo D’Onofrio, candidato derrotado em 2009, e que trouxera consigo nada mais, nada menos que Enzo Francescoli. Agora, as coisas pareciam estar em seu lugar. Tanto que conquistamos o Torneo Final e, apesar da má vontade de alguns cronistas esportivos daqui, o futebol apresentado foi muito bom.
Porém, o sofrimento se inseriu no cotidiano do torcedor millonario de vez, não há como negar. Falo isso por que as coisas estavam muito bem encaminhadas depois do título conquistado no meio de 2014. Mas Ramón Díaz pediu para sair. Aquele que é técnico mais vitorioso da história do clube, que dá entrevistas reafirmando sua paixão e provocando o rival, como provocou depois da vitória em La Bombonera, estava nos deixando. Com ele, Lobo Ledesma, volante de qualidade, 35 anos, que também tinha voltado ao clube por paixão. A sorte nos abandonaria de novo? Resposta: não.
D’Onofrio e Francescoli foram muito felizes na escolha de Marcelo Gallardo para treinador, seguindo a tradição de dar espaço a ídolos do clube ainda jovens no banco de reservas. Aos 38 anos, Muñeco vinha de uma experiência como técnico do Nacional de Montevidéu (Uruguai), e do outro lado do charco havia sido campeão. Era uma aposta, ainda mais depois da saída de Ramón, mas Gallardo manteve uma invencibilidade de 32 jogos e mostrou-se um grande comandante em campo, mesmo não sendo exatamente esse o seu perfil.
Fez o uruguaio Carlos Sánchez jogar um futebol dos deuses, viu o cigano Pisculichi, aos 31 anos, fazer chover e se tornar o melhor jogador da América do Sul, conviveu e deu moral ao Pistolero Teo Gutierrez, ressucitou Leonardo Ponzio, foi ajudado por Trapito Barovero (o goleiro mais magro do mundo), teve ao seu lado a torcida, anos de tradição de um futebol poético e a diretoria. Não poderia dar errado. Vencemos a Copa Sul-Americana de maneira invicta e incontestável. Perdemos o campeonato para o Racing, é verdade, mas foi feita uma escolha, e ela deu frutos. Todo o crédito para Gallardo.
Para sair do ocaso e voltar aos lugares mais altos do futebol mundial, o River teve que romper com os NOVOS PARADIGMAS. Os velhos é que sempre nos deram resultados. O Monumental é um lugar onde a tradição de um clube que abriga seus ídolos, se encontra com um futebol poético, mas sem deixar de ser aguerrido. Um lugar de estar, não de passar. Um lugar para onde todos sempre quiseram voltar, não um lugar para novas gestões, modernidade e profissionalização de araque. Essa tríade, na mão de picaretas e malandros (as vezes vestidos de ídolos ou ex-atletas vitoriosos), é muito perigosa. Claro que os desvios de recursos, a malversação de fundos e o azar também contribuíram, mas ainda bem que acordamos, nos reinventamos e agora por muitos anos estaremos sob os holofotes do futebol mundial.
El Más Grande Sigue Siendo River Plate!
Ah, e se é para ter essa torcida maravilhosa, que o clube ajude, sim. Não só a barra, mas os sócios aderentes, que fazem o espetáculo acontecer e que nunca desanimaram, que nunca precisam de campanhas publicitárias ridículas contratadas a peso de ouro.
Say No More
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