O sábado amanheceu chuvoso em Auckland, surpresa infeliz após uma semana de muito sol.
Apesar das condições não serem as ideais, valentes torcedores acharam forças para encarar a tempestade (que a cada hora só apertava) e se deslocar até o distante subúrbio de St. Johns, na região oeste, em busca de um endereço que nem o Google Maps sabia indicar com precisão. O esforço valeria a pena: os mais tradicionais clubes do país, Auckland City e Waitakere United, mediriam forças no recém-inaugurado campo sintético da reserva Ngahue, uma extensa área verde onde está sendo construído um complexo esportivo – local fácil se perder, mas com vista bonita o suficiente para evitar qualquer estresse.
Juntos, Auckland e Waitakere reúnem sete títulos continentais e todos os onze campeonatos nacionais já disputados nos atuais moldes. Para acirrar a rivalidade, são sediados em cidades vizinhas. Um clássico com esses ingredientes deveria gerar grande mobilização, mesmo em uma partida amistosa, certo? Bom, não na Nova Zelândia, terra onde grandes multidões são raras (há mais ovelhas do que humanos) e a monocultura do rúgbi é ainda mais forte do que a paixão dos brasileiros por futebol (basta pensar que o primeiro-ministro declarou explicitamente que gostaria de inspirar a nova bandeira nacional nas cores dos All Blacks).
A combinação (chuva forte + partida amistosa + local distante + pouca popularidade do esporte) resultou no público presente, contabilizado por este que vos escreve: TRINTA E UMA PESSOAS (todas aparentemente ligadas ao Auckland City), sendo pelo menos 5 parentes de jogadores, 2 funcionários do clube e 1 jornalista (eu).
Seria um cenário muito desolador se não fosse tão incrível. Éramos as únicas testemunhas da última partida de pré-temporada do 3º colocado do último Mundial de Clubes, diante do seu adversário histórico. Estávamos lá, longe de casa, passando frio, tomando chuva… E com pena de quem não tinha comparecido!
Com o Auckland City onde ele estiver
“Quero estar em todos os jogos e ver a evolução desses caras. É como se fosse uma família, fico feliz quando se superam. Às vezes perdem, se frustram, mas depois voltam melhores. Gosto de estar perto para observar isso”, explica Edward Lyons, contador de 51 anos, sem dúvidas o torcedor-símbolo da equipe. Não é exagero quando ele diz estar sempre presente. Sua paixão o faz viajar por conta própria para acompanhar o clube. Em 2014, por exemplo, esteve em Vanuatu para a final da Liga dos Campeões da Oceania e foi o único a ir até o Marrocos acompanhar de perto a façanha do time no último Mundial de Clubes (não se lembra? Recorde aqui).
O fanático já tem passagem comprada para o Japão, onde o Auckland City tentará surpreender o mundo novamente neste ano, estreando contra um representante da casa ainda indefinido. “Equipes japonesas são fortes, mas sempre estou confiante”, analisa Lyons, que já chegou até a dar palestras motivacionais para o elenco. Ele conhece bem cada atleta e nutre um carinho extra-campo por cada um deles. Questionado sobre o seu favorito, refletiu bastante e baseou sua escolha em um motivo não-convencional: “gosto do Emiliano Tade (atacante argentino) porque ele tem um grande senso humor”.
Para o resto da torcida, porém, as preferências se dividem entre o zagueiro japonês Takuya Iwata e o atacante português João Moreira. No caso do inglês John Palethorpe, de 30 anos, professor primário radicado na Nova Zelândia, o grande ídolo era o atacante papuásio David Browne, recentemente transferido para o time sub-21 do PEC Zwolle, clube da primeira divisão holandesa. “Ele estava um nível acima dos outros”, justifica.
Palethorpe é um dos torcedores mais engajados, responsável por atualizar o twitter não-oficial the248service (nome em referência a um ônibus comumente utilizado pela torcida) e puxar cantos. Debaixo de chuva, no entanto, a empolgação foi menor: “hoje não vai dar para cantar e pular com esse clima, mas venha em um jogo oficial da liga e verá, temos músicas para todos os jogadores”, garante. Apaixonado por futebol, ele encontrou no Auckland City uma forma de diminuir a saudade do seu clube no país natal, o desconhecido Dulwich Hamlet, de Londres, atualmente na sétima divisão do campeonato inglês.
Influências europeias
O professor John Palethorpe não é o único a seguir também um time europeu. Todos com quem conversei, exceto parentes de jogadores, tinham algo em comum: nasceram ou viveram por um período em países como Inglaterra, França e Bélgica, onde o futebol é popular, e de lá trouxeram o gosto pelo futebol. Se interessar pelo esporte sem sair da Nova Zelândia parece quase impossível. Foram vários os relatos de pais que tentaram levar filhos para jogos e fracassaram em convertê-los, pois a concorrência com o rúgbi nas escolas e na mídia parece ser desleal.
“Nem mesmo depois do que fizemos no Mundial de Clubes o número de frequentadores nas partidas aumentou”, constata Nick Hyde, neozelandês de 65 anos que descobriu a beleza do futebol em Londres. “Aqui o rúgbi é muito forte, quase ninguém sabe de outros esportes”, completa.
O próprio clube tem origem na colônia croata da cidade, ainda presente nas partidas. Uma parte dos atletas do Auckland City, inclusive, costuma jogar também pelo Central United, que carrega até as cores da Croácia no distintivo. Conhecendo a problemática história da antiga Iugoslávia, é de se admirar que atualmente o elenco conte com um sérvio, Marko Đorđević, jamais hostilizado. “Somos muito civilizados e não temos preconceito com ninguém”, conta orgulhoso o aposentado Jeff Hayward, de 65 anos, fã do Auckland e do Central.
Essa civilidade não se discute. Durante toda a partida, o máximo que se proferiu contra o árbitro foi um “o que foi isso?”, vindo do inglês Palethorpe, após um impedimento questionável. Logo após o lance, ele admitiu às vezes sentir falta de xingar juízes como em seu país natal, mas nem cogita importar a prática. “Na Nova Zelândia todos se conhecem e se respeitam. Já vi até casos de juízes que participam de fóruns de torcedores comentando suas próprias atuações”.
Ambiente familiar
Nesse clima amigável, parentes e namoradas de atletas são parabenizados pelos lances de seus familiares, mesmo que seja um passe errado. Raymond Den Heijer, 70 anos, a simpática avó do volante Michael, jogador da seleção neozelandesa sub-17, só não gosta de ver o neto em duras divididas: “é um esporte violento, às vezes fico assustada, embora rúgbi seja bem pior”, comenta aos risos.
Fernanda Flores, chilena de 22 anos (possivelmente a torcedora mais jovem no local), é outra que enfrentou a chuva para ver um amado, o namorado conterrâneo Eder Franchini, mais um entre tantos estrangeiros do elenco. Ela estuda odontologia na Nova Zelândia e está feliz com a oportunidade dada a Franchini, ex-jogador de futsal, de atuar em uma equipe importante, mesmo que precise de um emprego complementar para se manter.
A qualidade de vida em Auckland, eleita por algumas vezes a melhor cidade do mundo para se viver, costuma ser o principal atrativo para a procura de tantos atletas de outras partes do mundo. O clube, no entanto, se declara estritamente amador. Nenhum deles recebe salário regular – apenas algumas premiações -, apesar de treinarem cinco vezes por semana.
Um futebol diferente
Às vezes para melhor e outras para pior, a experiência de acompanhar um jogo em terras neozelandesas é bastante diferente da vivenciada na maioria dos lugares do Brasil e no resto do planeta – e a qualidade da partida, surpreendentemente, não está entre os destaques negativos. O Auckland City do técnico espanhol Ramon Tribulietx valoriza a posse de bola e possui um bom repertório de jogadas, razão para a supremacia nacional e tantas boas campanhas no exterior. Influenciar o resto do país é a próxima meta.
“Quando o Ramon adotou esse ‘tiki-taka’ espanhol não tivemos sucesso nos primeiros anos e muitos quiseram mudar a filosofia. Mas insistimos e agora vemos que dá resultado. Para se ter uma ideia, o Auckland City recentemente empatou com a seleção da Uzbequistão e fez jogos equilibrados com Austrália e Japão. Já quando os ‘All Whites’ (apelido da seleção da Nova Zelândia) enfrentam os mesmos adversários, com um estilo totalmente diferente, mais focado na força, sempre saem derrotados”, compara o atencioso assessor de imprensa Gordon Watson, que, no fim da partida, até me procurou para trocar uma palavra com os jogadores.
Apressado para outros compromissos e não querendo perder a carona camarada do novo amigo John Palethorpe, recusei a oportunidade. Deixei para a próxima. Afinal, mesmo que seja longe e debaixo da chuva, estarei lá outras vezes. É impossível um amante de futebol não querer voltar para um ambiente especial como os jogos do Auckland City.
Ah, quanto foi o jogo? Terminou 1 a 0 para o City, gol do sul-africano Ryan de Vries. E o Waitakere vai para dois anos sem vencer o rival!
Em outros lugares a torcida estaria revoltada, e o elenco sob ameaça… mas, definitivamente, esse tipo de coisa não deve acontecer tão cedo na Nova Zelândia.
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