Ele já havia sido vice-campeão olímpico de futebol em 1984, vice-campeão brasileiro em 2000 e 2001,vice-campeão da Libertadores em 2002 e até treinador do meu time. Agora, Jair Picerni estava ali, em um acanhado banco de reservas de Jarinu (SP), me vendo jogar futebol.
Picerni era o novo técnico do Red Bull Brasil, que disputava a Segunda Divisão do Campeonato Paulista – a rigor, a quarta – em 2009. Era o terceiro treinador do time no ano, dando sequência aos trabalhos de Ricardo Pinto e José Luiz Fernandes. Desempregado desde o começo daquele ano, tinha como objetivo promover o Red Bull à Série A-3 do Paulistão, o que conseguiu. Assumiu com o time já classificado para a segunda fase da Segundona.
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Aconteceu que, em uma sexta-feira de agosto daquele ano, meu chefe e eu fomos a trabalho ao treino do Red Bull – longa história, contada geralmente entre uma cerveja e outra para os mais íntimos. Durante a manhã, lá no centro de treinamentos em Jarinu, posicionamo-nos ao lado de um dos campos, assistindo a um dos primeiros trabalhos de Picerni.
Em campo, “Seu Jair” é exatamente como aparenta ser. Simples, paizão, divide-se entre frases como “tem que dar a mãozinha” e “morde, porra”, além do clássico “pega-pega-pega” de nove entre dez treinadores. Durante o coletivo, escalou a dupla de ataque com Zé Maria e Cézar. No meio-campo, Rodrigo Mauá ficou na reserva, ainda que tenha impressionado com algumas eficientes jogadas de efeito.
Até a chegada de Jair, o time não vinha fazendo uma campanha de grande destaque: nos 11 primeiros jogos, foram cinco vitórias, três empates e três derrotas. O elenco, que demonstrava alguma apatia, não escondeu a vibração nas primeiras atividades com Jair Picerni – tanto que, a cada boa jogada no treino, os jogadores elogiavam e incentivavam uns aos outros em voz alta. Ao fim dos trabalhos da manhã, antes da concentração, um mar de sorrisos e risadas tomou conta dos jogadores.
Com o fim do treino, Jair Picerni ficou no gramado, onde conversou com seu filho (Jairzinho Picerni, que integra a comissão técnica) e com Emílio Miranda e Furinha (igualmente membros do staff). Meu chefe e eu, acompanhados de um dos membros da parte administrativa do clube, descemos também. Cumprimentamos a todos, e Jair apertou minha mão.
Pode parecer estranho, mas eu fiquei particularmente bem feliz. Uma porque achei muito legal da parte dele topar o desafio de assumir um time que não tem a projeção dos times que ele está acostumado a treinar. Outra porque um dos “times que ele está acostumado a treinar” foi o meu, e nem fazia tanto tempo assim.
Picerni foi simpático com todos. Comentou sobre o São Caetano, falou sobre os times do campeonato, elogiou a estrutura do Red Bull, o CT de Jarinu, comentou sobre o elenco… Até já sabia o nome de alguns dos jogadores – talvez da maioria. Ao fim do papo, todos subiram do campo para a sede administrativa, onde a conversa continuou.
Lá, o pessoal da comissão técnica descontraiu e avisou: era hora do futebol. Meu chefe havia me alertado de que a sexta-feira por ali era sagrada, e o futebol do meio-dia era praticamente o culto: sempre tinha. Nós dois poderíamos até integrar a parada, ainda que eu estivesse um pouco cético quanto à possibilidade. Mas não é que aconteceu?
Sim, aconteceu. Descemos ao vestiário, onde o clube forneceu calções, camisas, meias, chuteiras e toalhas. Eu, que há algum tempo não pensava mais em seguir carreira como jogador de futebol, estava ali, com o uniforme de treino de um time profissional. Ao meu lado, conversando no vestiário, Jair Picerni.
Enquanto conversávamos, aconteciam as famosas piadinhas de vestiário – as desculpas de “estou fora de forma” e por aí vai. Seu Jair ria, e vendo que a média de idade do pessoal já não era das mais baixas, deu um tapinha nas minhas costas e disse ao pessoal: “esse aqui tem cara de que joga, hein?”.
Eu.
Sim, eu.
Eu, que já não tinha expectativas futebolísticas havia quase dez anos, parecia um jogador de futebol. E a opinião nem era da minha mãe.
Eu.
Diante disso, só me restou responder com uma piadinha de vestiário. “Só me falta talento. O resto…”, eu disse. Seu Jair sorriu.
Fomos todos para o gramado. Nove contra nove. Campo menor, sol forte. No banco de reservas, Jair Picerni assistia à movimentação. Depois de algum tempo de aquecimento e toque de bola, começou o jogo.
Perdemos o primeiro tempo por 2 a 1, mas eu participei da jogada do nosso gol: após uma cobrança curta de escanteio pela esquerda, tive algum tempo desmarcado e cruzei de direita a bola na área. Meu chefe, fazendo o pivô, escorou, e quem veio de trás soltou o pé. Mas o melhor ainda estava por vir.
No segundo tempo, alguém cruzou rasteiro pela direita. Após a confusão na área, a bola sobrou nos pés do meu chefe, que apenas empurrou para o gol. O goleiro (reserva do Zetti na passagem de ambos pelo Palmeiras) já estava batido no lance, mas se recuperou de maneira incrível e espalmou a bola. Que caiu nos meus pés.
Nos meus.
Eu.
Aquele que Jair Picerni havia dito “ter cara de que joga”.
Eu.
Só que eu nunca fui lá um talento. Em um espaço de uns dois metros quadrados, eu tinha a bola, meu chefe, o goleiro e a trave. Se eu chutasse forte, poderia acertar alguém – ou seja, meu chefe. Se eu tocasse para o centro da área, a defesa poderia afastar. Então, eu chutei colocado.
Na trave.
Mas tudo bem, porque eu já estava acostumado com a minha falta de talento. De fato, nosso time empatou, 2 a 2, ainda que eu nem me lembre como. Ainda tentei umas jogadas, mas bati para fora a minha melhor. Até que alguém cruzou de novo uma bola pela direita e eu tentei acertar de primeira. Peguei meio com o joelho e mandei no contrapé do goleiro, marcando o gol da virada.
Peraí: EU?
Sim, eu.
Eu fiz o gol. Time de vermelho 3 x 2 time de colete amarelo. Infelizmente, a essa altura, seu Jair já havia deixado o banco de reservas, e não viu o meu gol. Não teve cambalhota, dedos para o céu ou camiseta no rosto. Mas eu havia feito um gol em um goleiro que jogou profissionalmente no Palmeiras.
Eu.
No fim, o cansaço pesou. Eu me arrastei por uns 15 minutos no segundo tempo. Nosso time, cansado, não segurou a vantagem e acabou empatando por 4 a 4. Eu, porém, havia marcado um dos gols mais importantes da minha vida.
Como o que eu fiz de pênalti na segunda série, comemorado com o Neto no campinho do Braga Mello.
Ou como no dia em que eu fiz seis ou sete gols na educação física, na sétima série.
Ou quando eu fiz um gol de goleiro no colegial, chutando da minha própria área para o gol, no qual o Nishida era o goleiro.
Ou como quando eu recebi um cruzamento no society da APEA e cabeceei, mandando a bola no ângulo.
Enfim, o futebol acabou. Meu joelho doía. Cometi uma falta (no presidente do clube, descobri depois), sofri uma falta, fiz um gol, um cruzamento… E tudo – ou quase tudo – com o aval de Jair Picerni. Ele não viu, mas eu não duvido de que o seu “esse aqui tem cara de que joga” tenha me feito jogar mesmo.
Apenas para constar: dois dias depois deste treino, Jair estreou no comando do Red Bull perdendo em casa por 1 a 0 para o Primavera de Indaiatuba. O jogo foi válido pela última rodada da primeira fase da Segunda Divisão e foi disputado no Moisés Lucarelli. Com isso, o Red Bull terminou em quarto lugar no grupo e se classificou para a segunda fase. Já o Primavera terminou como lanterna.
(Este texto foi originalmente publicado em agosto de 2009 no blog La Cucaracha e adaptado para o Última Divisão. Cinco anos após este jogo relatado, o Red Bull assegurou sua vaga na Série A-1 do Campeonato Paulista.)
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